Índia quer proteger a herança milenar do ioga

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Perto de mil ásanas (poses de ioga) já foram filmadas e estão indexadas na Traditional Knowledge Digital Library, em Nova Deli Ajay Verma/Reuters

A Índia quer defender a herança histórica de milhares de diferentes posições do ioga ancestral. Objectivo: evitar os abusos e as apropriações comerciais que se têm registado em todo o mundo nas últimas décadas. Por Susana Almeida Ribeiro

Há mais de cinco mil anos os habitantes da Índia já praticavam ioga, a filosofia prática que promove um estilo de vida saudável e o autoconhecimento. Do seu berço original, o ioga viajou para o resto do mundo e aterrou, no século XXI, em colchões de ginásio, paredes-meias com aulas de step e body combat.

Precisamente para combater a adulteração das práticas e as apropriações comerciais do ioga pelo Ocidente, o Governo indiano anunciou recentemente que vai apresentar ao sistema internacional que gere os direitos de propriedade intelectual centenas de posições usadas nesta prática. E para isso tem vindo a documentar, nos últimos três anos, as diferentes poses de ioga (ásanas). Perto de mil já foram filmadas, estando indexadas na Traditional Knowledge Digital Library, em Nova Deli.

Depois de escrutinarem antigos textos em sânscrito, diversos especialistas fizeram gravações em vídeo de cerca de 900 posições, mas o acervo tem a pretensão de chegar ao registo de 1500 ásanas.

O Governo indiano tomou esta decisão porque lamenta que, nos últimos anos, centenas de patentes e marcas relacionadas com a filosofia do ioga tenham começado a despontar em todo o mundo. As autoridades de Nova Deli criticam o facto de esta prática milenar estar a ser usada como fonte de lucro indiscriminado. E acusam as empresas ocidentais de biopirataria.

"Seria muito desapropriado se alguns indivíduos ou empresas se tentassem apropriar deste conhecimento", indicou V. K. Gupta, que encabeça a Traditional Knowledge Digital Library, citado pelo portal News.com.

O problema tem-se agravado nas últimas décadas, desde que o ioga se popularizou em todo o mundo, nos anos 60, em pleno movimento Flower Power, durante o qual as gerações mais novas foram tomando contacto com as antigas civilizações orientais e com novos estados de ascese.

"Não estamos no negócio de patentear o ioga, estamos antes no negócio de prevenir patentes erradas do ioga. Queremos proteger o ioga de forma defensiva, para que todas as pessoas sejam livres de o praticar em todo o mundo", comentou V. K. Gupta à BBC Radio 4.

Portugal, segunda potência

Contactado pelo P2, o presidente da Confederação Portuguesa do Yoga, Jorge Veiga e Castro (que responde igualmente pelo nome iniciático Jagat Guru Amrta Súryánanda), explicou que Portugal tem estado em estreito contacto com a Índia neste processo de documentação das técnicas milenares do ioga.

"Portugal é a segunda potência mundial do ioga a seguir à Índia. Pouca gente sabe disto. Os dois países - que, por via da colonização, estão interligados há 500 anos - partilham contactos e a nossa confederação tem vindo a ajudar as autoridades indianas, há já algum tempo, neste projecto de documentação", disse.

Igualmente contactado pelo P2, António Pereira, presidente da Federação de Yôga do Sul e Ilhas de Portugal - e um dos impulsionadores do método DeRose (uma corrente do ioga) no país - considera que "o yôga [sic] ancestral e original, consequentemente o mais completo, foi deturpado ao longo dos séculos e milénios, por razões culturais, políticas, interesses pessoais dos mestres e da sociedade vigente, e, consequentemente, adaptado para consumo".

No entender de António Pereira, "o yôga deve ser preservado na sua autenticidade original como património cultural da Humanidade. Não deve ser adaptado ou reinventado".

Naturalmente, os tempos são outros. Os praticantes iniciais de ioga não são já os mesmos, a Humanidade evoluiu e a tecnologia acompanhou-a. Não deverá também o ioga evoluir e adaptar-se? António Pereira concorda com algumas marcas de evolução: "Algumas abordagens pedagógicas e didácticas podem ser melhoradas com os meios tecnológicos hoje disponíveis, como o uso de iPod para tocar as músicas como som de fundo durante as aulas; o uso do computador para estudo e prática através de aulas on-line por Skype, etc. Estes são alguns exemplos que não deturpam a essência desta filosofia, com adaptações para consumo/comercial."

Mas nem todos estão de acordo com o proteccionismo que está a ser levado a cabo pelo Council for Scientific and Industrial Research, dependente do Governo indiano, ao querer pôr uma espécie de marca de água nos ásanas.

Ouvida pela BBC, uma especialista londrina da filosofia do ioga, Swami Pragyamurti Saraswati, considera que a ideia de se patentear - ainda que de forma defensiva - algo tão universal como o ioga é "idiota".

"O ioga é um enorme corpo de prática e conhecimento, e não é possível patentear uma entidade tão vasta, ainda para mais uma percentagem muito pequena da mesma. O ioga não é só indiano", disse Swami Pragyamurti Saraswati.

Questionado acerca desta polémica, António Pereira adiantou ao P2 que não concorda com esta acção do Governo indiano: "O yôga é uma filosofia e não somente um conjunto de técnicas, fazendo hoje parte do património cultural da Humanidade e não só da cultura indiana."

Já Jorge Veiga e Castro considera bem-vindas estas tentativas do Governo indiano. Porque é na Índia que está "o grande conhecimento", diz. "O ioga tem sido guardado pela Índia durante milhares de anos, sem franchisings, e é natural que o queiram preservar. É como faz Portugal com o vinho do Porto, por exemplo. Trata-se aqui de preservar um legado milenar num trabalho de catalogação. Não se trata de proteccionismo, mas antes de se impedir que outras pessoas registem patentes de forma a que mais ninguém possa fazer uso destas técnicas."

Uma filosofia prática

O ioga surgiu na antiga Índia há mais de cinco mil anos, tendo sido criado por um bailarino que ficou conhecido em todo o mundo com o nome de Shiva, explica António Pereira.

Nos milénios seguintes, o país foi palco de sucessivas invasões, que originaram dezenas de modalidades diferentes de ioga. Algumas dessas correntes perduraram até hoje e, em Portugal, por exemplo, para além do método DeRose - que conta com milhares de praticantes - existem outros ramos do ioga, como o SwáSthya Yôga, o Hatha Yôga e o Sâmkhya Yôga.

Mas, no século XXI, o que significa ser praticante de ioga? É uma filosofia de vida, uma prática ascética, uma actividade de fitness? António Pereira responde: "O ioga é uma filosofia prática, uma filosofia de vida (...). O Método DeRose, em concreto [o praticado por António Pereira], é uma proposta de qualidade de vida, boas maneiras, boas relações humanas, boa cultura, boa alimentação e boa forma."

Algumas das suas ferramentas "são a reeducação respiratória, a administração do stress, as técnicas orgânicas que melhoram o tono muscular e a flexibilidade, procedimentos para o melhoramento da descontracção emocional e da concentração mental", continua. "Tudo isso, em última instância, visando a expansão da consciência e o autoconhecimento", acrescenta.

Quanto à meta última do ioga, ela consiste no samádhi, "um estado expandido de consciência que se caracteriza por uma maior lucidez e pelo autoconhecimento", explica ainda António Pereira para quem todos os benefícios do ioga são simples consequência de uma "filosofia de vida saudável".

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