Crónica de mais uma morte anunciada na Cidade do PortoCinemas

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Os cinemas Cidade do Porto fecharam na passada quarta-feira

Fecharam mais quatro cinemas, que eram explorados por Paulo Branco. "É o Porto que fica a perder", dizem os últimos espectadores. Sérgio C. Andrade (texto) e Paulo Pimenta (foto)

"Vocês vêm para o velório?" A pergunta-exclamação de António Costa, programador da Medeia Filmes no Porto, quando nos recebeu na tarde de quarta-feira, o anunciado último dia de funcionamento dos Cinemas Cidade do Porto, diz tudo sobre a atmosfera que se vivia junto às salas do shopping na Boavista.

Esta não é uma situação nova. Desde que o PÚBLICO foi lançado, em 1990, dezena e meia de cinemas portuenses, alguns deles com história na cidade - o Águia d"Ouro, o Batalha, o Trindade, o Carlos Alberto, os Lumière... -, foram tema de notícia precisamente pelo seu fecho ou mudança de actividade.

Os Cinemas Cidade do Porto, que foram explorados pela empresa de Paulo Branco desde 1994, e que sempre foram lugar de cinema independente, "sem pipocas", chegaram também agora ao fim. Pelo menos, com este perfil.

A atmosfera que aí se vivia no dia da "última sessão" era, pois, de desolação, mesmo se estávamos junto à "praça da restauração" de um centro comercial. Os escassos espectadores iam chegando um a um, um casal aqui e ali, e dirigiam-se quase todos ao responsável pelos cinemas, a perguntar-lhe sobre a situação. António Costa ia-se desdobrando em explicações para a decisão de Paulo Branco de encerrar mais um ciclo da sua actividade empresarial na segunda cidade do país.

A falta de rentabilidade e a necessidade de investir na modernização do equipamento de projecção são as causas próximas. E a consequência imediata do fecho é a cidade ficar, a partir de agora, com apenas três cinemas (o Campo Alegre, o reactivado Nun"Álvares e o complexo Dolce Vita, nas Antas), nenhum deles na Baixa. Uma realidade que já levou o Bloco de Esquerda a inquirir o Ministério da Cultura, no Parlamento. E que também já chegou à Internet, com um apelo no Facebook contra o fecho das salas, já com mais de mil assinaturas.

Situação "lamentável"

Bernard Despomadères, francês, cinéfilo dos mais fiéis a estas salas, e responsável pela acção cultural do Consulado de França no Porto, manifestava a sua "tristeza" pelo encerramento. "Numa altura em que se vai fazer uma homenagem no centenário do Henrique Alves Costa [1910-1988, um dos mais importantes críticos e historiadores de cinema da cidade, e não só], é lamentável que feche no Porto uma casa que passava o cinema que ele sempre defendeu", acrescenta este responsável pela extensão ao Porto da Festa do Cinema Francês, um dos acontecimentos que, em anos consecutivos, encheu as plateias do shopping do Bom Sucesso.

Já dentro de uma das salas, à espera da exibição de Eu e Deus, de John Hindman, a empresária tradutora Graça Castro Ribeiro - que seria a única espectadora nessa sessão ao final da tarde - lamentava não ter correspondido, "se calhar, com a regularidade que seria necessária para manter este projecto viável".

Cinema independente, europeu e de pequenas cinematografias do mundo inteiro (da França à Lituânia, do Brasil a Hong Kong, do Irão ao Senegal), distribuídas por quatro salas, era o programa dos Cinemas Medeia - no Porto como também em Lisboa (ver caixa).

"Mas o Porto tornou-se impossível", diz Paulo Branco, lamentando que a cidade - "onde há um discurso falso sobre a falta de cinema alternativo e só se fala da cinemateca" - não tenha correspondido a esse esforço de criar "um circuito alternativo". O produtor-exibidor confirma que o fecho das salas só acontece, agora, pela falta de rentabilidade. "Eu não quero desistir do Porto. Mas era preciso fazer investimentos muito importantes, e eles não compensavam", justifica, referindo-se à necessidade de digitalizar as salas para dar resposta à actual situação em que as majors e as grandes distribuidoras estão a deixar cada vez mais de lado o suporte película.

A caminho do desemprego

De regresso ao "velório", era mesmo este o clima que se percebia entre os trabalhadores que asseguravam o funcionamento diário dos cinemas. Cristina Dias, 40 anos, um filho de 12; Paula Soares, 34 anos, uma filha de oito; Paulo Antunes, 37 anos, um filho de quatro - três dos quatro funcionários (mais António Costa) que formavam o quadro da empresa, no Porto. Bilhetes de identidade do drama humano que diariamente vemos ser vivido na sociedade portuguesa, e que não deixa de fora a actividade do cinema, apesar do mundo de ficção e sonho que envolve esta arte e indústria.

As duas primeiras, responsáveis pela bilheteira, trabalhavam ali desde a abertura. Cristina mostrava dificuldade em esconder a emoção e a mágoa: "Não lhe sei dizer nada. Só sei que este foi o meu primeiro e único emprego. Agora não sei o que vou fazer." Paula, apesar de tudo, fazia um esforço para pensar no futuro: "Vou tirar uma formação ligada à estética, aprender a tratar do cabelo, das unhas..."

Paulo, um dos dois projeccionistas, já tinha sido tipógrafo, mas aprendeu a gostar de trabalhar com fitas. "Sempre gostei desta arte. Sei que agora está tudo a virar para o digital, mas o cinema com película é outra coisa." O fundo de desemprego é o destino mais provável para todos eles, após o mês de férias que agora vão ter, mas que certamente não vão gozar.

Após o jantar, os espectadores iam aparecendo, agora em (pouco) maior número. António Rui Reis, empresário, recusava a ideia de despedida. "Estou chateado, porque cada vez mais se aperta o funil para quem gosta de cinema. Isto é mais um degrau para o tombo digital", lamentava este espectador também fiel dos Cidade do Porto, que lembrava que tudo tinha começado já no tempo do "coronel Luís Silva, com a Lusomundo, a Olivedesportos e essa trapalhada toda". E entrou para ver Estômago, do brasileiro Marcos Jorge

Cá fora, Olga Vasconcelos, professora na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, à entrada para Polícia sem Lei, versão de Werner Herzog (com o cartaz e os rostos de Nicholas Cage e de Eva Mendes a dominar o hall de distribuição das salas), assumia a ideia generalizada de que "o Porto é que fica a perder". E também ela, e as filhas, que costumava trazer a "ver bom cinema" nestas salas. "Mas as pessoas gostam é das pipocas e dos cinemas que também dão de comer"...

Contudo, este não é o fim do cinema alternativo no Porto, assegura António Costa, ao mesmo tempo que chama a atenção para os cartazes que, no shopping, anunciavam os próximos filmes a exibir no Cine-Estúdio Campo Alegre, que a Medeia também vem programando desde há alguns anos. Wendy and Lucy, da cineasta independente americana Kelly Reichardt, está já esta semana em cartaz. Seguir-se-ão filmes de Catherine Corsini, Marco Belocchio, André Techiné, Mathieu Amalric...

António Costa nota, até, que isto é, de certo modo, um regresso às origens, a 1991, quando a Medeia começou a programar, no Porto, a Casa das Artes. "Vamos reperspectivar o nosso projecto apontando-o sempre para o cinema independente que não chega às outras salas", assume.

Mas também pode acontecer que as salas do Cidade do Porto não abandonem definitivamente a actividade cinematográfica. É esta, pelo menos, a intenção manifestada pela administração do shopping, que diz estar à procurar de um operador que continue a explorar os cinemas. E promete "mais conforto e a digitalização do equipamento, uma coisa que o mercado determina como sendo inevitável", explica a assessora Marlene Silva.

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