"Nunca desperdiçar uma boa crise"

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Dois anos depois, a Europa está em vias de saída da mais grave crise financeiro-económica desde a recessão dos anos trinta

Como alguém disse, as crises podem ser oportunidade de ouro na busca de soluções para as ultrapassar - e para prevenir outras no futuro. Assim deverão proceder a União Europeia e os seus Estados-membros perante o terramoto causado pela crise financeira originada nos Estados Unidos há dois anos.

Na verdade, trata-se de uma tripla crise. Primeiro, foi a crise do setor financeiro, com a bancarrota ou ameaça de bancarrota de instituições financeiras, o aperto no crédito, a queda das bolsas. Segundo, foi a crise económica e social, em consequência daquela, traduzida na redução drástica da procura, do investimento e da atividade económica, com consequências dramáticas no desemprego. Finalmente, veio a crise das finanças públicas traduzida no súbito aumento dos défices orçamentais e no disparo da dívida pública, por causa da perda receita fiscal e do agravamento da despesa pública.

Mercê de medidas coordenadas a nível da União, estas três sucessivas crises foram enfrentadas com maior ou menor determinação e acerto. O setor financeiro foi salvo, à custa de maciço apoio do Estado. A retoma económica está em curso, em virtude de vastos programas de estímulo público. A crise orçamental está a ser combatida, mediante dolorosos programas de austeridade.

Dois anos depois, a Europa está em vias de saída da mais grave crise financeiro-económica desde a grande recessão dos anos trinta do século passado. Para esse sucesso contribuíram as lições dos erros então cometidos, bem como a experiência entretanto acumulada. Mas foi decisivo também o facto de agora haver a União Europeia e de as respostas terem sido dadas num quadro da integração económica e política europeia. Sem as ações tomadas a nível da UE, a crise teria tido um impacto bem mais profundo e duradouro do que teve.

Mas seria impensável que depois disto tudo ficasse na mesma e voltássemos ao business as usual. Impõem-se reformas profundas e ambiciosas.

A crise do setor financeiro revelou a carência de regulação e de supervisão dos mercados financeiros, sobretudo a nível da UE, bem como a falta de mecanismos de resgate ou de falência de bancos, sem necessidade de recurso ao orçamento do Estado. Num mercado financeiro integrado, como é o da União, impõe-se a criação de um sistema de supervisão "federal", capaz de superar a fragmentação dos sistemas de supervisão nacionais. Para prevenir a repetição futura de resgate público das instituições financeiras privadas à custa dos contribuintes, impõe-se a criação de fundos alimentados por contribuições das próprias instituições, calculadas em proporção dos seus ativos e dos seus riscos.

Se o combate à recessão económica implicou a coordenação dos pacotes de estímulo público a nível da EU, não é admissível que se perca a oportunidade para instituir mecanismos permanentes de coordenação das políticas económicas nacionais, desde logo para atenuar os desequilíbrios macro-económicos dentro da União, promover o crescimento e combater o défice de competitividade externa da própria economia europeia.

A crise orçamental, com maior impacto nos países onde a retração económica foi mais pronunciada ou onde a situação das finanças públicas era estruturalmente mais débil, veio obrigar a exigentes programas nacionais de austeridade e de re-equilíbrio orçamental. O abcesso grego veio revelar a possibilidade de "falência soberana" dentro da zona euro, por impossibilidade de refinanciamento da sua dívida. Daí a necessidade de encarar a criação de um mecanismo de empréstimos ad hoc, que os pais fundadores da moeda única não tinham julgado necessário.

Se a União e os Estados-membros foram em geral eficazes e expeditos na resposta à emergência das sucessivas fases da crise - com exceção da lamentável demora na resposta ao colapso da dívida grega, que salpicou outros países e ameaçou a própria estabilidade do euro -, já tem sido extraordinariamente lenta na montagem das instituições e dos mecanismos pós-crise.

O pacote da regulação e de supervisão financeira, apresentado pela Comissão Europeia há quase um ano, arrasta-se há meses no Parlamento Europeu, sujeito à pressão dos lóbis financeiros. A questão do financiamento do resgate ou encerramento de bancos só agora foi objeto de uma comunicação da Comissão Europeia, propondo a criação de fundos nacionais alimentados por contribuições dos bancos (o que é uma solução "coxa", comparada com a alternativa de um fundo europeu, mais congruente com a já elevada integração do mercado financeiro europeu).

A ideia de maior coordenação europeia das políticas económicas nacionais tem marcado passo, entre a visão mais integracionista da Comissão Europeia e de alguns Estados-membros (como a França e a Espanha), que propõem um verdadeiro "governo económico" da União, e as visões minimalista de outros, com a Alemanha à cabeça. O Conselho Europeu criou um grupo de trabalho, coordenado pelo seu próprio presidente, Von Rompuy, mas concedeu-lhe um mandato até ao fim do ano (!) para apresentar o seu relatório. Tendo sido arrepiadoramente lenta na resposta à crise orçamental grega e à contaminação que ela produziu noutros países, a União já foi bem mais expedita na apresentação de medidas para debelar e prevenir novas crises orçamentais, incluindo a fiscalização das contas nacionais, o controlo prévio da disciplina orçamental e a punição dos prevaricadores. Mas a ideia de um mecanismo permanente para ajuda aos países em dificuldades orçamentais excecionais continua a ser objeto de especulação sem resultado.

A tripla crise mostrou a indispensabilidade da UE. A União não pode falhar as suas responsabilidades nem perder pela demora na sua assunção. Depois da crise há muita coisa que não pode ficar na mesma. Professor universitário. Deputado ao Parlamento Europeu pelo PS (vital.moreira@ci.uc.pt)

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