Valongo oferece ao Grande Porto uma área protegida na serra

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O rio Ferreira corta o anticlinal de Valongo para atravessar, rumo a sul, o vale formado pelas serras de Santa Justa ?(a oeste) e Pias (a leste) Fernando Veludo/NFACTOS

Fundo de mar há 500 milhões de anos, as serras que hoje se erguem até 300 metros acima do solo, no Sul de Valongo, estão em vias de classificação, depois de décadas em que o município tentou, sem sucesso, criar um parque com Gondomar e Paredes. Por Abel Coentrão

a Valongo cansou-se de esperar. Trinta e cinco anos depois dos primeiros contactos para a criação de uma área protegida que salvaguardasse e valorizasse o património ambiental, cultural e geológico das serras que se estendem pelo Sul do concelho aos municípios vizinhos, a autarquia aproveitou uma mudança recente na legislação para criar uma área protegida local. Um parque que, quando Gondomar e Paredes quiserem, poderá ter o âmbito metropolitano próximo do que o Estado, em 1975, lhe augurava.

O período de discussão pública terminou esta semana. Pela frente há ainda um regulamento e um plano de gestão para fazer, mas o sinal está dado. A Área Protegida das Serras de Santa Justa e Pias é irreversível. "Às vezes é preciso atirar uma pedrada ao charco para que algo se mova. Estamos a fazer o nosso trabalho e esperamos que as ondas de choque cheguem onde têm que chegar", explicou ao Cidades o vice-presidente da Câmara de Valongo que, chegado há pouco ao executivo, não desconhece o longo historial deste processo, pejado de propostas parlamentares e tentativas de negociação com os organismos da administração central para a criação de um parque no grande pulmão verde do interior do Grande Porto.

Se o passado se descreve com cansaço, a persistência é o outro substantivo desta história. Desde o início da década de 90 do século passado, o município encetou em paralelo uma colaboração com a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, hoje centrada em vários cursos do Departamento de Geociências, Ambiente e Ordenamento do Território para o estudo desta área. Um dos resultados visíveis desta cooperação, elogiada, pela sua raridade como iniciativa autárquica, por Helena Couto, docente de Paleontologia, é o Parque Paleozóico, criado em 1994. Uma estrutura de apoio ao estudo e visitação de uma serra rica em fósseis e reconhecida internacionalmente não tanto pelos seus nomes populares mas como parte do anticlinal de Valongo, uma grande dobra na crosta terrestre que chega até Castro Daire, provocada por movimentos tectónicos ocorridos há menos de 400 milhões de anos.

Antes disso, e por duas vezes, pelo menos, este lugar esteve debaixo de um mar. E algures há 480 milhões de anos, esse fundo era habitado pelas mesmas trilobites e outras formas de vida rudimentar que, fossilizadas no xisto, deram fama, mais a sul, à Pedreira do Valério, em Arouca. A evolução geológica do planeta ditou-lhe a forma, com a ajuda, em Valongo, dos rios Simão e Ferreira. E o homem, esse ser tardio nos 4600 milhões de anos do planeta, aproveitou-lhe as riquezas.

Já na nossa era, os romanos esburacaram a serra à procura de ouro. A mineração, que prosseguiu já nos séculos mais recentes na busca de outros metais, como o volfrâmio e o antimónio, e a extracção de lousa, marcaram a economia mas também a paisagem, quase tanto quanto os moinhos que pontuam o vale e que nos séculos XVIII e XIX asseguravam farinha para o pão que alimentava o Porto. Património que chega até nós, parte degradado, parte visitável, como as galerias mineiras de há dois mil anos, e que é uma das mais-valias desta área protegida já famosa entre os espeleólogos e os amantes dos desportos radicais.

As minas e a salamandra

Vítor Gandra, que por aqui fundou a associação Alto Relevo e está empenhado em ajudar a autarquia na criação deste parque, não duvida das potencialidades do local, onde já existem quatro trilhos marcados. Um deles é o corredor ecológico que em nove quilómetros lineares liga Valongo a Couce, memória de aldeia à beira rio, com os seus lameiros ainda cultivados, protegida pela crista de Santa Justa do betão de que, a oeste, se faz isso a que chamamos o Grande Porto.

Quem percorrer distraído qualquer um dos percursos já marcados ao longo destes pouco mais de mil hectares pensará, dada a profusão de eucaliptos, que é pouco o valor ambiental deste território. Mas a verdade é que a mancha dessa árvore australiana que a indústria de papel naturalizou esconde ecossistemas (ou o que resta deles) com espécies de fauna e flora cuja preservação esteve na origem da integração da área na Rede Natura. São os casos de duas plantas insectívoras, alguns fetos e da salamandra-lusitânica, endémica da Pensínsula Ibérica e agradecida aos romanos, que lhe deixaram os fojos (minas), em cuja penumbra húmida nidifica.

O mar andou por aqui. Povos castrejos, romanos e outros mineiros mais recentes, também. Agora, as serras de Santa Justa e Pias almejam outro futuro e outros frequentadores. Para uma das suas encostas está já licenciado um centro hípico, e a autarquia espera que, melhoradas as condições para usufruto "sustentado" do espaço, ele possa gerar riqueza económica, pela via do lazer e do turismo, sector que poderá aproveitar as ruínas de moinhos e de antigas casas de Couce para edificar, às portas da cidade, um refúgio que mais parece do Portugal profundo. A edilidade conta com a colaboração da Portucel que, explorando 400 dos mil hectares da área protegida, se mostra, segundo o autarca João Paulo Baltazar, muito interessada em colaborar neste esforço, que passará também, em algumas zonas, por acções de reflorestação com espécies autóctones.

Quanto aos concelhos vizinhos, que detêm 1500 dos 2500 hectares do Sítio Valongo da Rede Natura 2000 (ver infografia), o autarca admite que, a seu tempo, acabarão por fazer o seu caminho, abrindo portas para uma classificação mais ampla deste território onde os riscos, como o fogo, vinca, "não têm fronteiras políticas". O Cidades tentou, sem sucesso, ouvir responsáveis das autarquias de Gondomar e Paredes, para saber em que ponto do caminho estarão. Já a investigadora Helena Couto defende que, do ponto de vista geológico, o argumento de João Paulo Baltazar é também aplicável, frisando as vantagens da classificação da zona a sul e oeste de Santa Justa e Pias para a sua área de trabalho. Os ambientalistas da associação Campo Aberto acreditam que Valongo está a ser a "lebre" do processo. "O que estão a fazer é muito importante para a Área Metropolitana do Porto", assinala o activista Jaime Prata.

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