Como o mundo mudou uma ideia: o fim da História não aconteceu

Foto
Os presidentes Obama e Hu Jintao em Novembro último, durante a visita oficial norte-americana à China Li Xueren/XinHua/Xinhua Press/corbis

Do "fim da História" à "ascensão do resto". Em 20 anos, o mundo assiste a uma das maiores mudanças tectónicas dos últimos séculos. A China é o grande vencedor da globalização. A sua integração exige à América uma nova forma de exercer a sua liderança. Por Teresa de Sousa

No dia 22 de Junho de 1897, o pequeno Arnold Toynbee, encavalitado aos ombros do seu tio, assistiu deslumbrado à gigantesca parada que celebrava o 60º aniversário da ascensão ao trono da Rainha Vitória. Nesse dia, todos os 400 milhões de súbditos de Sua Majestade, um quarto da humanidade, tiveram direito a feriado. Arnold, que veio a ser um dos maiores historiadores britânicos, escreveria muitos anos mais tarde sobre essa experiência inesquecível. "Lembro-me da atmosfera. Bem, nós estamos no topo do mundo e chegámos aqui para aqui ficar para sempre. Há, naturalmente, uma coisa chamada História, mas a História é algo de desagradável que acontece aos outros povos. Nós estamos confortavelmente fora dela."

No Verão de 1989, Francis Fukuyama publicava um longo artigo na revista americana The National Interest. Era ainda uma interrogação: "O fim da História?" Argumentava que a democracia liberal pode constituir "o ponto final da evolução ideológica da espécie humana" e "a forma última de governo humano". É o ensaio geral da obra que iria captar o espírito de uma década. O Fim da História e Último Homem, publicado em 1992, é sobre "saber se, no final do século XX, faz sentido voltarmos a falar de sentido último da História que acabará por levar grande parte da humanidade à democracia liberal." A resposta é sim.

Vencedora absoluta da guerra fria, a América, como o Império Britânico no final do século XIX, estava no topo do mundo. Fora da História.

Na véspera de Natal de 1991, Michael Gorbatchov assinava o decreto que punha fim à União Soviética. A NATO não precisara de disparar um tiro. A 16 de Março desse mesmo ano, depois de ter transportado 500 mil homens para a Arábia Saudita e de ter vencido num mês a primeira guerra da era pós-Guerra Fria, George H. W. Bush anunciava no Congresso americano uma "nova ordem mundial".

"Esta noite venho a esta câmara falar sobre o mundo - o mundo depois da guerra (...). Um mundo em que é possível uma nova ordem mundial." Um mundo em que "as Nações Unidas, libertas do impasse da Guerra Fria, estejam em condições de cumprir integralmente a visão histórica dos seus fundadores. Um mundo em que a liberdade e o respeito pelos direitos humanos encontrem uma casa em todas as nações".

O internacionalismo do primeiro Bush centrava-se na revitalização da ideia de segurança colectiva através de uma ONU liderada pela América. Contra todas as expectativas, Bill Clinton rouba-lhe a oportunidade de tentar pô-la de pé.

A América é a única superpotência sobre a terra. O seu poderio inigualável. O novo Presidente quer elevar a economia na agenda externa americana e colocar a democracia e os direitos humanos no seu topo. Realizar o "fim da História" anunciado por Fukuyama.

A economia americana aquece os motores, preparando-se para tirar todo o partido da revolução tecnológica e da globalização dos mercados. O mundo tenta adaptar-se à única superpotência e a única superpotência hesita sobre o que fazer do mundo. "O imprevisível Gulliver" anuncia em 1997 a revista francesa Rameses. "A América à procura de um papel."

Internamente, o debate intensifica-se sobre o que deve ser a política externa americana. Woodrow Wilson ou Theodore Roosevelt? O triunfo universal do bem e como impô-lo ao mundo através da lei internacional? Ou a manutenção de um equilíbrio mundial que impeça a supremacia de qualquer outra potência? Os conservadores acusam Clinton de não defender os interesses vitais da América. Comporta-se como se fosse "a Madre Teresa do mundo" com as suas pequenas guerras humanitárias. Na Somália, no Haiti, nos Balcãs.

O Leste europeu democratiza-se. A América Latina segue o mesmo caminho. A China de Deng ficará irremediavelmente marcada por Tiananmen, mas mantém o seu rumo em direcção ao enriquecimento. A Rússia de Ieltsin é ainda amiga do Ocidente. Em 1998, os atentados terroristas contra as embaixadas americanas no Quénia e na Tanzânia estão longe da sua dimensão apocalíptica. A Al-Qaeda é nome de coisa restrita aos círculos da espionagem e aos think tanks especializados.

Os dividendos da vitória da Guerra Fria chamam-se democracia, mercados, globalização, paz. A América dá as cartas. O mundo segue. Com estados de alma.

A "hiperpotência" torna-se incómoda. A Europa acredita que lhe cabe o papel de contrapoder ao seu poderio excessivo. Em Paris, começava a falar-se de um mundo multipolar. Mas quando, em 1997, Bill Clinton se vê enredado no escândalo Lewinsky, o mundo fica nervoso. A América é "a nação indispensável", lembra Madeleine Albright.

Um nome para uma era

No Verão de 2000, a revista Foreign Policy desafiou um grupo de pensadores a dar um nome à era pós-Guerra Fria. Fukuyama admite que o recuo do político e a predominância do económico apontam para a "Era da Globalização". O poder da superpotência sugere a "Pax Americana". Insiste na sua ideia matriz. "Não há grandes conflitos que possam caracterizar o mundo no seu conjunto. Então por que não chamar-lhe apenas o fim da História?" O académico alemão Christoph Bertram prefere "Interregno" - "uma era que não pode durar". Bertram avisa que a unipolaridade americana é "complacente", não se empenha na construção de uma nova estrutura internacional para não limitar o seu próprio poder, "transporta consigo as sementes da sua natureza transitória".

O vento está prestes a mudar em Washington.

No mesmo Verão, Condoleezza Rice escreve para a revista Foreign Affairs um artigo com os fundamentos da política externa do candidato George W. Bush, de quem é a principal conselheira. Proclama que o exército americano não existe para reconstruir países, mas para defender os interesses vitais da América.

Em 2001, Henry Kissinger publica a sua obra "Does America Need a Foreign Policy? Toward a Diplomacy for the 21th Century". "O legado dos anos 90 produziu um paradoxo." No apogeu do seu poder, os EUA não conseguiram desenvolver novos conceitos para uma realidade completamente nova. "Nem assistente social [como Clinton], nem mestre-escola com a régua na mão [como a direita republicana]. O que a América precisa é de uma mistura de ambas as coisas e uma boa dose de humildade sobre o que pode ou não pode ser imposto ao mundo."

O mundo estava prestes a assistir à maior demonstração da vulnerabilidade da América.

O 11 de Setembro

A colossal magnitude dos atentados contra as Torres Gémeas e contra o Pentágono no dia 11 de Setembro de 2001 interrompeu brutalmente a narrativa do pós-Guerra Fria. Pela primeira vez desde Pearl Harbour, a superpotência era atingida no seu próprio território por um inimigo externo. A América e o mundo entravam numa era sombria de incerteza e de medo. A pergunta de Kissinger sobre o que fazer do apogeu americano - "Império ou Liderança" - iria ter em breve a sua resposta.

O terrorismo islâmico apresentava-se na sua versão global e apocalíptica. A "guerra ao terror", proclamada pela Administração Bush, passava a determinar a relação da América com o mundo. Nos últimos dez anos, os "neoconservadores" tinham pensado uma "revolução". O 11 de Setembro tornou-a possível. A segurança da América depende da democracia no mundo. E a América dispõe de um colossal poder para a impor. Pierre Hassner chama-lhe de ""wilsonianismo" de botas". Chegara finalmente a oportunidade anunciada em 1991 por Charles Krauthammer: a América teria o seu "momento unipolar".

A guerra do Iraque partiu a Europa ao meio, lançando a aliança atlântica na sua maior crise de sempre. Desgastou brutalmente a imagem da América. Destrui o seu soft power. Esgotou parte dos seus colossais recursos económicos. Enquanto Bush combatia Saddam e a Al-Qaeda, a China comprava títulos do tesouro americanos.

A disputa pela supremacia mundial continua a discutir-se dentro do campo ocidental.

Em 2005, Mark Leonard obtinha um relativo sucesso com um pequeno ensaio sobre Why Europe Will Run the 21th Century. "Os que pensam que a Europa é fraca e ineficaz estão enganados." O soft power da Europa como a alternativa ao hard power da América.

Mas o acrónimo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) já tinha sido cunhado por um anónimo economista da Goldman Sachs, em 2001. Os think tanks americanos começavam a debater o verdadeiro desafio: a ascensão da China. A globalização revelava-se não como a americanização do mundo - o fim da História -, mas como a alavanca para o crescimento económico das potências emergentes. A Rússia de Putin começava o seu caminho de regresso ao autoritarismo. A China provava que o capitalismo era compatível com um regime totalitário. Emergiam novos actores internacionais desejosos de autonomia e de respeito. O centro de gravidade do crescimento mundial deslocava-se do Atlântico para o Pacífico. Em Nova Iorque, as sucessivas tentativas de reforma das Nações Unidas fracassavam.

A era do unilateralismo imperial da América vai sair de cena com a mais dramática das encenações: a catástrofe financeira que atinge o coração do seu poder.

A ascensão do resto

É com a pequena história de Arnold Toynbee que Fareed Zakaria, o editor da Newsweek internacional, inicia a sua reflexão sobre o futuro do poder americano num longo artigo publicado na Foreign Affairs de Maio/Junho de 2008. "Como a América pode sobreviver à ascensão do resto." Zakaria alerta para a dimensão da mudança geopolítica a que estamos a assistir - "a terceira grande mudança tectónica dos últimos 500 anos". Com a primeira nasceu a supremacia europeia. Com a segunda a supremacia americana. Com aquela a que hoje assistimos, começa porventura o fim da supremacia do Ocidente. É o ensaio geral para a obra cujo título haveria de captar, como Fukuyama há 20 anos, o espírito do tempo presente: O Mundo Pós-Americano e a Ascensão do Resto.

A crise é o grande acelerador desta portentosa mudança. Hoje, já nos habituámos a viver ao ritmo dos recordes económicos batidos pela China. Em 2009, 100 por cento do crescimento mundial teve origem nos mercados emergentes. "O G8 foi despedido pela História enquanto clube das ricas nações ocidentais e o seu lugar já foi tomado pelo G20, que esconde, por sua vez, uma nova fórmula de distribuição do poder numa nova ordem mundial: o G2", escrevia Joschka Fischer no Inverno passado, analisando as consequências de 1989.

"Até agora, nunca fomos capaz de distinguir entre o que é ocidental e o que é moderno", diz Zakaria numa longa entrevista ao PÚBLICO pouco depois da eleição de Barack Obama. "Agora, outros vão encontrar as suas próprias formas de modernidade." A China apresenta-se hoje ao mundo como um modelo alternativo de desenvolvimento.

A História - voltamos a ela - diz-nos que uma transferência de poder como aquela a que assistimos hoje se fez sempre através da guerra. O desafio da América é conseguir provar que isso não é obrigatório. "O grande desafio do Ocidente é criar um modelo sustentável de partilha do poder mundial assente na cooperação. Capaz de resolver os nossos problemas e os deles", diz Zakaria. Isso exige uma nova forma de exercer o poder americano. "A eleição de Obama é a grande oportunidade." Mais uma vez, é a América que pode fornecer a resposta. Sem garantias.

Sugerir correcção