Trazer à superfície os tempos mortos

Antes de "Moby Dick", houve "Hero, Captain and Stranger", o filme. Não que este dado seja fundamental para o visitante da nova exposição de João Pedro Vale. Ou é? Explicamos: são duas experiências em tempos e espaços distintos (o filme, em co-autoria com Nuno Alexandre Ferreira, foi exibido apenas uma vez). Mas existem relações óbvias.

O projecto nasceu de uma residência artística realizada por João Pedro Vale em Nova Iorque, com o objectivo de investigar as comunidades de imigrantes portugueses formadas por pescadores baleeiros originários dos Açores e que residiram sobretudo na Costa Leste dos EUA. O encontro com a obra literária, porém, motivou outro caminho. Depois das leituras de ensaios dos Queer Studies sobre o livro de Herman Melville, João Pedro Vale afastou-se do imaginário e das memórias do mar, deslocando para segundo plano a gesta representada para trazer à superfície outras significações, numa ficção (plástica e visual) em torno daquilo que Jennifer Doyle chamou de "Moby-Dick´s Boring Parts" (ou seja, os capítulos em que a narrativa é reduzida a acções aborrecidas, a passagens didácticas sobre a caça à baleia ou a descrições da vida a bordo do baleeiro).Quem leu o livro reconhece os seus tempos mortos e é exactamente aí, nesse reconhecimento, que o artista intervém. Os tempos mortos são o lugar do tédio, mas podem ser também - enquanto não se avista a baleia no horizonte - o do sexo e (porque não?) da arte. Ora, é nesta sobreposição de leituras e sentidos que o artista cria a sua "Moby Dick".

"Hero, Captain and Stranger" teve a sua estreia e única exibição em Novembro passado em Lisboa, num cinema porno (o Cine Paraíso). O lugar não é inocente. O primeiro filme de João Pedro Vale é, ao mesmo tempo, um filme pornográfico gay e uma adaptação curta e livre de "Moby Dick", sem diálogos, apenas com a voz off do narrador (uma referência à peça teatral "Moby Dick Rehearsed", de Orson Welles). Rodado a preto e branco - com alusões a Anger e a Genet -, possui, como qualquer obra pornográfica, uma monotonia suspensa e acelerada pelas cenas de sexo. É um espaço intertextual entre o escritor e João Pedro Vale, entre as partes "chatas" do livro e a pornografia, entre o tédio dos baleeiros e o tédio do leitor/espectador.Na exposição, encontram-se objectos que, embora remetendo para o filme (com efeito, figuram neste), existem autonomamente enquanto produtos do fazer, do humor e da invenção do artista. São disso exemplo a instalação-ambiente com o mesmo nome do filme, que "reconstitui" as camaratas dos baleeiros, "So Much, So Little Time", um conjunto de velas em forma de pilas sobre o caixão que salvará a vida de Ismael, ou os dentes de baleias cujas superfícies deixam ver desenhos gravados, numa alusão directa à "scrimshaw", arte que os marinheiros usavam para matar o tempo, e mais subtil ao fazer do próprio João Pedro Vale, minucioso, "manual", e não raras vezes feito sobre superfícies (noutras obras, sobre pele, sabão, pastilhas elásticas).

A sombra do desejo e da sexualidade (homossexual) não deixam de assombrar, com ironia, este curioso "museu" (onde não faltam vitrinas com arpões), mas nele as obras dirigem-se, essencialmente, ao imaginário cultural, político e artístico construído à volta de "Moby Dick" (afinal, o Grande Romance Americano). Como acontece nas reproduções de obras de Frank Stella e Jackson Pollock, ou nas pinturas, ilustrações e desenhos relativos à caça ou ao mito da baleia/do monstro que compõem a série "Of The Monstruous and Less Erroneous Pictures of Whales".

Sobre a montagem da exposição, subsiste apenas uma dúvida: não será possível apresentar as peças (todas) num contexto mais exclusivo?

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