O voo dos estorninhos

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JornalistaA varanda do meu 4.º andar é provavelmente o melhor ponto da cidade para observar os estorninhos. Esta é a época em que eles chegam, às centenas de milhares, para passar o Inverno. Instalam-se nas palmeiras à beira-rio, e entregam-se aos seus incríveis rituais quotidianos, durante alguns meses.

De manhã e ao princípio da tarde, não sei por onde andam. Mas antes do crepúsculo concentram-se aqui. E começam então os treinos. Porque é disso que se trata: enquanto estão num local fixo, treinam para a grande viagem sazonal de que depende a sua sobrevivência.

Separam-se em bandos, que voam em paralelo, para depois se unirem numa nuvem densa e opaca a rodopiar como um manto negro no vento. Avançam em formação militar, milimetricamente organizados por esquadrões em voo picado, que de súbito dispersam, e como que caem, à maneira de lágrimas num fogo-de-artifício. E depois fazem desenhos no céu, e efeitos de conjunto que parecem não ter outro propósito que não seja provocar intimidação e deslumbramento, como os jogos de massas na China de Mao.

Em certas manobras, é nítida a componente de espectáculo. Há estorninhos que rebolam desamparados até palmos do chão, antes de se elevarem num derradeiro golpe de asa, como trapezistas que fingem falhar o salto, só para ganhar um grito emocionado da plateia.

Sabe-se que o objectivo de tudo isto é ensaiar a grande expedição, em que as aves, avisadas por uma alteração hormonal no seu próprio organismo, viajam para outro habitat, usando complexos sistemas de navegação que incluem os campos magnéticos da Terra, a linha costeira, os sistemas hidrológicos e montanhosos, os maciços florestais ou a temperatura e humidade das massas de ar.

Mas a verdade é que as acrobacias aéreas dos pequenos pássaros podem ser assustadoras. Há meses li que uma aldeia da Beira Alta entrou em pânico por causa de um imenso bando de estorninhos que se instalou numa certa árvore da praça central. As pessoas convenceram-se de que aquele prodígio lhes traria doenças, ou mesmo males do outro mundo.

Em mim, o voo dos estorninhos tem um estranho efeito hipnótico. Não me canso de o observar. Se o fizer durante horas, um êxtase incompreensível apodera-se de mim. Ou de algum lugar longínquo em mim, onde nunca levei ninguém. Ou quase nunca.

Uma vez apaixonei-me por uma mulher de que não gostava. Quem passou por isso sabe que não é fácil. Pior: ela também não gostava de mim. Não obstante, fomos viver juntos. É impossível explicar por que aceitámos o Inferno que se seguiu. Talvez estivéssemos ambos tão cansados e desorientados que não tivéssemos mais onde pousar.

Éramos completamente diferentes, todos os seus actos e palavras me enfureciam, não tínhamos um momento de paz. Excepto aquele.

Ela parava, os olhos muito abertos como pedaços azuis de céu, a observar o voo dos estorninhos. Eu aproximava-me e ficávamos ali os dois, de mãos dadas na varanda, em silêncio, extasiados.

Depois chegou a Primavera, os estorninhos voaram para outras paragens e ela também.

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