1989, reacção em cadeia

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Janeiro

Um mundo sem inimigos?Em Washington, George H. Bush sucede a Reagan - num "mundo refrescado pela liberdade", disse na posse. Em Moscovo, Gorbatchov pregava uma ordem internacional "sem inimigos". Falava-se no fim da Guerra Fria. Em Maio de 1988, a URSS iniciara a retirada do Afeganistão. Os cubanos iriam sair de Angola e os vietnamitas do Camboja. A RDA, como a Checoslováquia, a Bulgária e a Roménia, estava "congelada". Mas na Polónia e na Hungria havia fortes sinais de "degelo". Até que ponto, e dentro de que limites, estaria a URSS disposta a aceitar a "renovação" da Europa de Leste? Em Moscovo, a perestroika acelerava-se. Seria o comunismo reformável? Ou seria Gorbatchov um "erro genético" do sistema? "Pressentem-se grandes acontecimentos, não se sabe quais", dizia um anuário de estratégia.

6 de Fevereiro, na Polónia

A Mesa-Redonda

As negociações entre Governo e Solidariedade, a Mesa-Redonda, começam a 6 de Fevereiro. As greves de 1988 convenceram o general Jaruzelski da urgência de relegalizar o sindicato/partido de Lech Walesa, banido em 1981. E o Solidariedade facilita-lhe a vida: quer prioritariamente legalidade para agir na sociedade, deixando o Governo aos comunistas. Jaruzelski tinha, desde 1988, a luz verde de Gorbatchov. O acordo é assinado a 7 de Abril: os sindicatos serão livres; haverá reformas políticas e eleições em Junho. O Solidariedade só poderá concorrer em 35 por cento dos círculos da Dieta (câmara baixa), de forma a que os comunistas mantenham o poder. Mas as eleições para o Senado serão livres. Walesa está optimista: diz a Bush que pode chegar ao poder "dentro de dois anos".

26 de Março, na URSS

Sismo eleitoralAinda não havia multipartidarismo mas os cidadãos podem escolher, pela primeira vez desde 1917, entre vários candidatos, e as eleições rapidamente se tornam, como desejava Gorbatchov, uma feroz competição entre "conservadores" e "reformadores". Depois de uma campanha eufórica, é eleito um Soviete Supremo dominado pelos renovadores, em que o antigo dissidente Sakharov assume a liderança do bloco democrata radical. Em Leninegrado, Kiev ou Minsk, os chefes locais do Partido Comunista são esmagados. Em Moscovo, Boris Ieltsin é plebiscitado e emerge como líder russo. Na periferia do império, entram em cena os nacionalistas. É um sismo político, e não só para a URSS, pois contagia os leste-europeus. É o apogeu e o princípio do declínio de Gorbatchov.

2 de Maio, na Hungria

A Cortina rasgadaA Hungria começa a desmantelar, a 2 de Maio, a Cortina de Ferro nos 120 km de fronteira com a Áustria, cortando as barreiras de arame farpado electrificado. Ninguém sabe dizer quando é que a Hungria deixou de ser um país de "tipo soviético", já que fez um silencioso "processo evolutivo" no interior do partido comunista. Em 1988, Janos Kadar, no poder desde 1956, cede o poder a Karoly Grosz. O tecnocrata Miklos Nemeth assume o Governo. A 11 de Janeiro, o Parlamento vota uma lei das associações que autoriza partidos e, a 11 de Fevereiro, o Comité Central aprova o multipartidarismo. Em Junho, os renovadores, liderados por Imre Pozsgay, dominam o partido e abrem o diálogo com a oposição numa Mesa-Redonda. A primeira televisão privada emite a 1 de Julho.?12 de Maio, nos EUA

Doutrina Bush"Não é fácil roubar o protagonismo a Gorbatchov", escreve um jornalista. Respondendo a mais um passo do líder soviético - a retirada unilateral de 500 ogivas nucleares tácticas na Europa -, Bush tenta recuperar a iniciativa e, ao mesmo tempo, encorajar Gorbatchov. A 12, anuncia uma nova orientação política: a "contenção" do expansionismo soviético" está ultrapassada e deve dar lugar a uma "integração da União Soviética na comunidade das Nações". Exige no entanto que a URSS revogue a "doutrina Brejnev", de hegemonia na Europa de Leste. "Rasguem a Cortina de Ferro", apela Bush, que preparava uma visita à Polónia e à Hungria. Mas os húngaros tinham-se já antecipado.

3 de Junho, na China

TiananmenNa noite de 3 para 4 de Junho, o Exército Popular carrega sobre os estudantes e a multidão concentrados na Praça Tiananmen, em Pequim, provocando centenas de mortos. O movimento democrático começara em 17 de Abril, a pretexto duma homenagem fúnebre ao ex-secretário-geral reformista Hu Yaobang, demitido dois anos antes e falecido a 15. O movimento alastra e o secretário-geral, Zhao Ziang, parece favorecê-lo. Ao escolher a repressão, a direcção do PCC, encabeçada por Deng Xiaoping, opta por uma alternativa brutal à perestroika de Gorbatchov: reformas económicas capitalistas, sim, reformas políticas democráticas, não. Zhao Ziang cai em desgraça.

4 de Junho, na Polónia

Solidariedade ganha eleiçõesNas eleições legislativas polacas, a 4 e 18 de Junho, o Solidariedade esmaga os comunistas, conquistando todos os lugares (35 por cento) da Dieta a que podia concorrer e 99 dos 100 lugares do Senado. O resultado é tão esmagador que torna obsoleto o acordo de repartição do poder assinado em Abril, na Mesa-Redonda. Seguro de si, Walesa recusa uma coligação com os comunistas. Chega-se a um compromisso: o general Jaruzelski será eleito Presidente da República, o Solidariedade assumirá o Governo, os comunistas conservarão as pastas sensíveis de que Moscovo não autoriza a abrir mão, o Interior e a Defesa. O católico Tadeuzs Mazowiecki torna-se, a 19 de Agosto, o primeiro chefe de governo não comunista do Leste europeu.

28 de Junho, na JugosláviaO Campo dos MelrosÉ a segunda morte de Tito: a emergência dos nacionalismos que desagregarão a Jugoslávia. No Campo dos Melros, no Kosovo, local onde os turcos derrotaram os sérvios em 1389, perto de um milhão de pessoas aclamam o novo líder sérvio: "Slobo! Slobo!" Slobodan Milosevic fora eleito Presidente sérvio em 1987. O presidente da Liga dos Comunistas, Stipe Suvar, acusa-o de nacionalismo e "totalitarismo populista". Em Setembro, o Parlamento esloveno inscreve na sua Constituição o direito à secessão e o multipartidarismo. Em Outubro, após violentas manifestações no Kosovo (24 mortos), Belgrado anula a autonomia da região. A Jugoslávia permanecerá de fora da revolução democrática de 89, para implodir, a partir de 1991, sob o fogo cruzado de virulentos nacionalismos.

16 de Agosto, fronteira austro-húngara

A grande evasãoMilhares de jovens da RDA resolvem passar "férias" no Ocidente, através da Hungria. A 16 de Agosto, 500 deles ocupam a embaixada da RFA em Budapeste, exigindo vistos. A 19 de Agosto, os leste-alemães aproveitam um "piquenique europeu" do arquiduque Otão de Habsburgo para passarem a fronteira austro-húngara. A 11 de Setembro, a Hungria deixa cair a RDA e abre a fronteira. Bona agradece a Budapeste. Em dois meses fogem 200 mil leste-alemães, o que vai desestabilizar a RDA, onde Erich Honecker julgava tudo ter sob controlo: nas eleições locais de Junho, os comunistas tinham obtido os habituais 95 por cento. Moscovo percebe o risco e adverte Bona de que não aceita que se ponha em causa o statu quo saído da guerra. O seu projecto é outro: uma confederação alemã neutral, a longo prazo.

23 Agosto, no Báltico

A "cadeia humana"Centenas de milhares de nacionalistas baltas protestam contra o domínio soviético através de uma "cadeia humana" de quase mil quilómetros, organizada pelas Frentes Populares da Lituânia, Estónia e Letónia. Era o 50.º aniversário do pacto germano-soviético, que permitiu a sua anexação pela URSS. A 27, é a vez de nacionalistas moldavos se manifestarem contra a anexação do país pela URSS em 1944. A agitação nos Bálticos dobra, no Norte, a tensão no Cáucaso, onde as movimentações nacionalistas, sobretudo na Arménia e na Geórgia, se misturam com sangrentos conflitos interétnicos. A 1 de Julho, Gorbatchov advertira que a radicalização nacionalista poderia levar ao fracasso da perestroika.

10 Outubro, na Hungria

PC dissolve-seNo congresso de 7 a 10 de Outubro, os comunistas (Partido Socialista Operário Húngaro) dividem-se: a maioria abdica do marxismo-leninismo e forma o Partido Socialista. Simbolicamente, o PSOH dissolve-se, devendo os militantes reinscrever-se no novo partido (os "conservadores" mantêm a sigla, mas sem futuro). Era o primeiro exemplo da "social-democratização" que a seguir acontecerá por todo o Leste. A ruptura pode também ser situada a 16 de Junho, quando Imre Nagy (primeiro-ministro durante a insurreição húngara de 1956 e fuzilado pelos soviéticos) foi reabilitado, em exéquias póstumas que duraram um dia inteiro, transmitidas em directo pela TV. A 23 de Outubro, o Parlamento revê a Constituição e proclama a "IV República" húngara, que substitui a "democracia popular" instaurada em 1949.

29 de Outubro

Doutrina SinatraEm visita à Finlândia (25/27 de Outubro), Gorbatchov manifesta a intenção de não intervir no Leste europeu, abandonando formalmente, e no momento decisivo, a doutrina Brejnev, que justificava a intervenção soviética nos países "em que o socialismo estivesse em perigo". Já o havia declarado a 6 de Julho no Conselho da Europa, no discurso sobre "a casa comum europeia". Mas é a 29, que o seu porta-voz, Guenadi Guerassimov, lhe dá um nome, dizendo a jornalistas americanos: "Temos agora a doutrina Sinatra, My way." A mensagem foi entendida. Confirmava a renúncia ao uso da força na Europa de Leste. E também as especulações sobre a vontade de Gorbatchov eliminar os inimigos "ortodoxos" de Berlim, Praga ou Bucareste, para os substituir por "reformadores".

9 e 10 de Novembro, em BerlimO Muro cai"Nós somos o povo", grita-se desde Setembro nas manifestações de rua em Leipzig e Dresden, animadas pelos opositores do Neues Forum. No 40.º aniversário da RDA, a 7 de Outubro, Gorbatchov avisa Honecker: "A vida encarrega-se de punir os que se atrasam." Segue-se o "beijo da morte", imortalizado pelos fotógrafos. Honecker demite-se a 18. O sucessor, Egor Krenz, depressa perde o controlo da situação. Dia 4, um milhão de manifestantes em Berlim. Dia 6, meio milhão em Leipzig. A 9, o porta-voz de Krenz anuncia que a fronteira será aberta no dia seguinte. À noite, há uma pequena multidão junto ao Muro e centenas de pessoas começam a escalá-lo. A polícia levanta as barreiras. Até ao fim de 12, dois milhões de pessoas passam a fronteira. Bulldozers abrem brechas no Muro. Na rua, passa a ouvir-se: "Somos um só povo."

13 Novembro, em Tirana

A excepção albanesa

Graças ao seu isolamento e ao facto de não pertencer ao Pacto de Varsóvia (Enver Hodja rompera com Moscovo em 1960), a Albânia, então dirigida por Ramiz Alia, atravessa incólume o ano de 1989, tornando-se no último reduto do comunismo europeu. A 13 de Novembro de 89, o Presidium da Assembleia do Povo aprova, discretamente, "um perdão geral" para certas categorias de presos políticos, permitindo a libertação dos "mais idosos". O multipartidarismo será decretado em 1990, após uma incontrolável vaga de emigração e milhares de albaneses se terem refugiado em embaixadas ocidentais. Em 1992, os comunistas perderão o poder em eleições legislativas. No quadro das crises balcânicas, a Albânia vai conhecer uma era de convulsões.

17 Novembro, na Checoslováquia

Revolução de VeludoApós o "socialismo de rosto humano", liquidado pela invasão soviética de 1968, o sistema checo tornou-se num dos mais repressivos e petrificados do Leste. Ao contrário da Polónia, a repressão era eficaz e a oposição frágil. Com a queda do Muro de Berlim, e perante a complacência de Moscovo, o regime ruirá em poucos dias. A 17, manifestações estudantis eclodem em Praga e estendem-se a todo o país. A 20, há 200 mil pessoas na rua em Praga. A direcção comunista de Milos Jakes demite-se a 24. Greve geral a 27. A oposição, liderada pelo democrata Vaclav Havel, organiza-se à pressa no "Fórum Cívico" e propõe negociações. A 29, o Parlamento revê a Constituição e, a 10 de Dezembro, aprova um Governo de maioria não comunista. A 29, Havel é eleito Presidente.

18 Novembro, em Paris

Jantar no Eliseu

Os dirigentes da Comunidade Económica Europeia (CEE) foram reagindo casuisticamente aos acontecimentos do Leste. A precipitação da queda do Muro a todos apanha desprevenidos. A 18 de Novembro, Mitterrand organiza uma cimeira-jantar no Eliseu com os primeiros-ministros da CEE e Jacques Delors para discutir a situação. Todos dizem: "É preciso ajudar Gorbatchov." Cavaco Silva insiste: "É preciso o Grande Mercado de 1992." Ninguém fala da reunificação alemã. Thatcher adverte: "Não se toca em fronteiras, senão é a balcanização." Para tranquilizar os parceiros, que temem que uma reunificação torne a Alemanha demasiado poderosa e a afaste do projecto europeu, Helmut Kohl concorda em acelerar a União Económica e Monetária. A 28, sem informar os aliados, o chanceler anuncia um plano de reunificação alemã.

2 e 3 Dezembro, em Malta

Nova eraA bordo do paquete Maxim Gorki, ancorado em Malta, Bush e Gorbatchov anunciam o começo de uma "nova era" e a aceleração das negociações sobre desarmamento. "A mudança é espectacular [...] e enterra todas as doutrinas anteriores", diz Bush, homenageando Gorby. Este acentua: "O mundo deixa uma época de Guerra Fria, [...] é apenas o princípio dum longo caminho para uma longa paz." Num primeiro passo para a "integração internacional" da URSS, os EUA aprovavam a sua entrada no GATT, no estatuto de observador. Gorbatchov contará dias depois a Mitterrand que disse a Bush: "Se os valores capitalistas triunfam, que propõe você? Uma pax americana? Isso é incompatível com uma aproximação Este-Oeste [...] O diktat não levará a nada."

11 Dezembro, na Bulgária

Golpe palaciano

A perestroika russa encoraja os polacos; a Polónia acelera a Hungria; a Hungria ajuda a dissolver a RDA; a queda da RDA arrasta a Checoslováquia e a Bulgária e, por outra via, a Roménia. O secretário-geral do PC búlgaro, Todor Jivkov, 78 anos de idade e 35 de poder, é forçado a demitir-se, numa dramática reunião do Comité Central, a 10 de Novembro, sendo substituído pelo seu ministro dos Estrangeiros, Petar Mladenov, abertamente encorajado por Moscovo. O golpe palaciano e a tentativa de reforma chegam tarde. A 11 de Dezembro, 50 mil anticomunistas manifestam-se em Sófia. A 12, Mladenov anuncia eleições livres. O PC renuncia ao "papel dirigente" e, a 15, começa uma Mesa-Redonda. O PC, transformado em Partido Socialista, ganhará as legislativas de 1990, mas perderá as presidenciais.

25 Dezembro, na RoméniaCeausescu fuzilado

A Roménia era o "satélite" mais autónomo de Moscovo. Mas o conducator (líder) Nicolae Ceausescu, acolitado por sua mulher Elena e seu filho Nicu, criara um delirante reino. Destruíra o centro histórico de Bucareste para fazer obras megalómanas. A 16 de Dezembro, há motins em Timisoara. A Securitate (polícia política) abre fogo. A 21, Ceausescu é vaiado em Bucareste. Um golpe político-militar está em andamento. A 22, um dissidente anuncia que o ditador está em fuga. As televisões filmam montes de cadáveres das vítimas de Timisoara: soube-se depois que era uma encenação macabra. Uma Frente de Salvação Nacional, liderada pelo futuro Presidente Ion Iliescu, toma o poder. A 25, o casal Ceausescu é fuzilado. A 26, as imagens da execução são passadas nas televisões internacionais.

Dezembro, na TimeO Homem da Década

Na última edição do ano, a revista Time elege Gorbatchov o "Homem da Década". O epílogo de 1989 ainda mal estava a ser vivido. Relembremos os primeiros efeitos. A reunificação alemã consuma-se em 90, ano em que Walesa se torna Presidente da Polónia e Mandela é libertado; 1990 é ainda o ano da invasão do Kuwait pelo Iraque e da dissolução do Pacto de Varsóvia. A 27 de Março de 1991, começa na Eslovénia a primeira guerra jugoslava. A 19 de Agosto, falha em Moscovo o putsch neocomunista contra Gorbatchov. A 8 de Dezembro, Boris Ieltsin e os líderes da Ucrânia e Bielorrússia declaram extinta a URSS. Gorby demite-se e sai da história a 25 de Dezembro. Com a Guerra do Golfo e o fim da URSS, os EUA emergem como solitária superpotência global. aJ.A.F.

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