Torne-se perito

Fra Angélico A revelação da luz divina

a Diz-se que esta pintura levou o seu autor ao êxtase. Pode acontecer-nos o mesmo. Quem já visitou o Convento de São Marcos, em Florença, para ver as pinturas que Fra Angélico fixou nas celas que os frades habitavam, teve com certeza um tremor: ao subir a escadaria que conduz ao primeiro piso, surge diante de nós, num instante, a Anunciação.
No primeiro momento, podemos pensar numa revelação. Não, está mesmo ali a pintura de Guido di Pietro (c. 1397-1455), ou Fra Giovanni da Fiesole na vida religiosa (depois conhecido como Fra Angélico). As duas delicadas figuras - do Anjo e da Virgem -, que se encontram num átrio, junto de um jardim, obrigam-nos a suspender tempo e respiração naquela janela ilusória, aberta na parede do corredor norte do convento. O monge pintou outras Anunciação - na exposição podem ver-se outras duas - mas a de Florença é especial.
Fra Angélico - A Aurora do Renascimento, exposta nos Museus Capitolinos, em Roma, não nos traz as celas, nem a Anunciação, nem o Noli Me Tangere de São Marcos de Florença, mas revela-nos Fra Angélico no seu fulgor. Uma das obras mais importantes, o tríptico Ascensão, Juízo Universal, Pentecostes, da Galeria Corsinni de Roma, nunca tinha sido sequer sido exposta.
À entrada, podemos ver uma Virgem da Humildade. Sóbria, esta obra relaciona-se com a Tebaida, de c. 1420, colocada logo depois e que remete para a espiritualidade dos eremitas. Numa versão quase cinematográfica, vemos cenas da vida quotidiana de frades e ascetas, dos quais os mendicantes (franciscanos e dominicanos, ordem à qual Fra Angélico pertencia) são também devedores.
Timothy Verdon (L'Arte Cristiana in Italia, vol. 2), possivelmente o mais importante especialista de arte sacra italiana, escreve sobre Fra Angélico: "O primeiro Renascimento florentino produz o maior intérprete de arte cristã de todos os tempos: (...) um religioso dominicano que conhecia desde dentro os mistérios da fé que era chamado a pintar."
Este fundo conhecimento dos mistérios da fé levava G.C. Argan (citado por Maurizio Calvesi no catálogo da exposição) a escrever, em 1955, sobre o monge-pintor: "Envolveu-se a figura de Fra Angélico com uma lenda, da qual [o seu biógrafo, Giorgio] Vasari é o principal responsável. Grosso modo, poderia resumir-se assim o seu ponto de vista: Angélico era um santo, portanto a sua pintura é santa. Antes de pintar, ele rezava e chorava e as suas obras reflectem as visões paradisíacas dos seus êxtases."
O Paradiso, outra das obras em destaque nesta mostra, é uma das visões destes êxtases: a multidão de anjos converge para um centro, onde estão Cristo e a Virgem, destacados por um feixe luminoso. Esta utilização da luz, central na pintura de Fra Angélico, corresponde a um programa teológico intenso. Para o monge, traduzia a centralidade do tema da oração contemplativa. Na teologia cristã, a luz é o símbolo de Cristo ressuscitado. Como também é a primícia da criação: "Deus disse: 'Faça-se a luz.' (...) e separou a luz das trevas...".
Este jogo da luz assume ainda dimensões morais explícitas: na obra Bem-aventurados; Condenados, destaca-se a luz intensa, o branco e a harmonia dos que se salvam, colocando os condenados num fundo escuro, no qual as personagens são confusamente sobrepostas. No já referido tríptico Corsini, o Juízo Universal privilegia a expressão dos rostos e das mãos de Cristo e do anjo como o enunciado maior proposto pelo pintor, dividindo bem-aventurados e malditos.
No programa cromático e formal, a cor, o relevo, as emoções e expressões dos rostos - na linha do que Giotto inaugurara - acentuam o programa teológico pretendido por Fra Angélico.
A dimensão da contemplação é deveras essencial neste monge. Mas a esta característica não são alheios também factores como a profundidade do espaço, o realismo das cenas (com o objectivo de representação sacra) e o simbolismo teológico para o qual elas remetem - a porta, por exemplo, é um ícone frequente, numa representação que assume a arquitectura como outra das linguagens contemporâneas.
No catálogo da mostra, Maurizio Calvesi fala da "visão abertamente naturalista", ou do naturalismo "naturado" de Angélico. O monge-pintor segue a ideia medieval de uma natureza criada por Deus, imóvel, mas opõe-lhe um idealismo que regenera e redimensiona o misticismo medieval. É uma obra "tradicional e nova" ao mesmo tempo, conclui. Uma aurora do Renascimento, como titula a exposição.

Beato Angelico - L'Alba del Rinascimento

Musei Capitolini (Capitólio), RomaTerça a Domingo, 9h00 - 20h00
Até 5 de Julho

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