Emanuel Pimenta "Merce, me diz uma coisa..."

Merce Cunningham revolucionou a dança contemporânea. Emanuel Dimas de Melo Pimenta, um auto-intitulado "luso-brasileiro", autor da música de três peças de Cunningham, traça o retrato do amigo. Falar de Merce é também falar de John Cage. O maior coreógrafo do mundo fez 90 anos na quinta-feira e continua activo.

Você gosta de dança? O Merce Cunningham representa cinco revoluções na dança. A dança clássica tinha uma história. Quando nós éramos pequenos, O Lago dos Cisnes, aquela coisa toda - ela sempre contava uma história. Com Merce Cunningham, a dança não precisa mais contar história nenhuma. Ela é um movimento do corpo. Ela é uma escultura no ar. Essa foi uma das revoluções. A outra é que pela primeira vez acabaram-se as marcas no chão. Eu nunca fiz dança [risos], mas todo o mundo que fez sabe que, como no teatro, há marcas no piso, que o público não vê. Com o Merce, todos os indicadores passaram a ser o corpo humano, o próprio movimento do corpo. Isso era absolutamente desconhecido até então.
Depois, é assim: como é que um coreógrafo compõe, qual é o método dele, antes que ele começa, já pensou nisso? O que o Merce Cunningham começou a fazer nos anos 50 foi compor a coreografia com acaso. Nisso ele sempre esteve muito próximo do John Cage, eles foram parceiros durante muitos anos. Imagine o seguinte: a cabeça pode fazer vários movimentos, não é? Então ele selecciona um movimento, atira os dados e vê para que lado ela vai se mexer. Cada um dos parâmetros - o tempo, a velocidade, a movimentação, a posição do corpo - é determinado pelo acaso e não pela pessoa. Ou seja, não é ele que faz a dança, mas o acaso. Mas ele é que desenha o acaso. É um método completamente diferente de se coreografar. E que acaba por produzir uma dança completamente diferente daquilo que acontecia até então.
Outra revolução, que começou com Antonin Artaud, um grande dramaturgo do começo do século XX: uma coisa nunca deve ilustrar a outra. Quando uma coisa ilustra a outra, aquela que ilustra é degenerada, é menor que a outra. Se uma música é feita para uma dança, ela vai atrás da dança. No caso do Merce Cunningham, a performance da dança é uma coisa, há um concerto musical simultâneo, que é outra coisa, a iluminação é outra coisa, e os cenários são outra coisa... Uma pessoa poderia ir lá só para apreciar os cenários, que são uma obra de arte, independente da dança. Poderia ouvir o concerto, totalmente independente da dança. Não é uma performance convencional em que a música e a dança são feitas uma para outra. Cada um é um elemento autónomo e soberano, um não se submete ao outro.
Eu trabalho com o Merce desde 1986. Tenho quatro concertos com ele. Fabrications foi o primeiro e tocou a semana passada em Mineápolis. Tem sido tocado durante esses 23 anos sem parar, talvez seja um dos concertos com maior incidência na história da companhia. Mas eu nunca soube o que ele ia fazer, e ele nunca soube o que eu ia fazer. Como nunca soubemos o que a Dove Bradshaw, que criou o décor, ia fazer [risos]. A única coisa que nós sabíamos era que aquilo tinha de durar xis minutos. Cada um fez uma obra e no final nós juntámos as obras. Não é interessante?
A última revolução aconteceu em 1991, com o LifeForms. Até então, a notação da coreografia era muito precária. Como é que nós podemos fixar sobre o papel os movimentos de um corpo? É quase impossível porque o corpo é muito complexo. Uma vez acho que estávamos em Madrid, foi em 88, eu vi que havia uma diferença muito grande entre alguns dançarinos dele. Eu estava conversando com ele e falei: "Merce, me diz uma coisa. Mas porque é que as pessoas são tão diferentes umas das outras?" E ele disse: "Olha, às vezes o mesmo movimento é totalmente diferente. As pessoas caminham de forma diferente. E a dança é isso, é o ser natural. Eu não quero impor para ninguém uma forma que as pessoas devem ser. Elas devem ser elas próprias quando dançam." Isso é muito bonito, não é? É um respeito muito grande à pessoa. Bom, mas como escrever isso? Como escrever o movimento no espaço e no tempo? No começo dos anos 90, um grupo canadiano de investigação sobre computadores criou o LifeForms e o Merce Cunningham foi o primeiro coreógrafo no mundo a trabalhar com sistemas digitais de coreografia. Essa também é uma revolução.
Muitas pessoas não sabem, falam assim: "O sujeito é famoso porque ficou famoso." Não, atrás dele tem um grande trabalho. São anos e anos de transformações da forma de pensar a própria dança que influenciou milhares e milhares de pessoas no mundo todo.
Quer saber como é que eu conheci o Merce? Em 85 eu fiz um grande concerto na Bienal de São Paulo. Era um concerto para quatro orquestras, distribuídas dentro do edifício da Bienal. Conhece a Bienal de São Paulo? É um edifício muito grande que tem um grande vazio no meio de onde se pode ver todos os andares. E as orquestras ficavam distribuídas por todos esses pisos. Tem umas imagens desse concerto na Net. Aí vai ver como eu era bonitinho. Não tem aquela história do sapo que vira príncipe?! Eu sou o príncipe que estou virando sapo. De manhã quando vou ao espelho, eu falo: quem é esse cara vestindo o meu pijama? É chocante... Eu estava fazendo lá um grande concerto e o John Cage estava lá. Nós nos conhecemos pelas mãos do Augusto de Campos, que é um grande amigo meu, um grande poeta.
E o John imediatamente quis que eu começasse a trabalhar com ele e com o Merce Cunningham aqui em Nova Iorque. Era um mundo muito interessante. Imagina: era o John, o Merce, o David Tudor, o Bob Rauschenberg, o Jasper Johns, o William Anastasi, todas essas pessoas, e convivíamos de uma forma simples. Hoje, às vezes a gente pega uma meninada que praticamente copia coisas, e são superarrogantes. Naquela época, as pessoas eram muito simples, o dinheiro valia muito menos, tinha menos importância do que tem hoje.
Foi aí que começou o nosso trabalho. Eu estava a morar no Brasil. Uma opção era ir para Nova Iorque, outra era o Canadá. Mas eu era português. E achei que era um absurdo não ir para Portugal. Aí eu tinha casa, era o meu mundo também. Passei parte da infância em Portugal. Toda a minha família é portuguesa, eu fui o primeiro a nascer fora de Portugal, a minha filha já nasceu aí. Nasci em São Paulo, no Brasil. É engraçado porque lá eu sou "o portuga" e aí eu sou "o brasuca".
Eu tinha 27 anos, era bem mais novo. A companhia do Merce foi como uma família. As pessoas sempre foram muito simpáticas. Nunca vi cara feia lá. Nunca vi um sujeito com a boca para baixo. Não é aquelas coisas de chegar, por exemplo, a um teatro e ter o chefe, o sujeito que grita ou que manda. Nunca. Era um clima maravilhoso. Havia uma simplicidade. Não havia o sujeito com o nariz lá no céu. Eu acho que isso talvez tenha sido influência do John Cage. O John Cage foi a pessoa mais doce, mais amorosa que conheci na minha vida. Ele vivia rindo. Durante sete anos, foi o meu melhor amigo. Respeitava todo o mundo, era uma pessoa muito humilde, tudo o que podia fazer pelas pessoas, ele fazia. E quando alguém brigava na frente dele, ele ficava profundamente triste, era uma pessoa extremamente sensível. Devo a ele tantas, tantas coisas. Em 2003 lancei um livro, que foi considerado um dos bons livros escritos sobre ele. Era um ser raro. Quer dizer, às vezes tem um sujeito que é muito genial mas que não é boa pessoa.
Há mil coincidências entre nós. Nós dois amávamos Henry David Thoreau. E eu amava Thoreau muito antes de saber que John amava Thoreau. Depois, eu desde menino jogo I-Ching [técnica milenar chinesa, com uma função oracular], e sei fazer todas as inversões. Hoje jogo menos, mas antigamente era muito bom nisso. E o John Cage jogava I-Ching também.
Eu tinha uma expectativa muito grande em relação ao John mas tinha imenso receio de encontrar uma pessoa arrogante. Porque ele era uma pessoa famosa, já. Ele tinha 70 anos quando o conheci, 70 e tantos anos. Foi muito engraçado porque eu estava preparando o meu concerto, estava dentro daquele imenso salão da Bienal, e de repente chega um cineasta amigo meu, o Rodolfo Nanni, com o John do lado. O John estava completamente chateado porque ele tinha ido para o Brasil e o tinham usado de todas as formas possíveis e imaginárias. Tinham colocado o John a dar entrevistas de manhã até à noite, tinham usado o John de tudo quanto é forma para publicidade. E ele não gostava disso. Eram poucas pessoas, eram mais os intelectuais, os músicos, que o conheciam. E, de repente, aquelas donas de casa de alta sociedade, que no Brasil são conhecidas como "peruas", sabe como é que é?, aquelas tiazonas a falar assim: "Ah, eu amo o John Cage. É o meu compositor favorito, eu só oiço John Cage..."
Quando entrou na Bienal naquele dia, o John estava passado, com a boca para baixo. E nos apresentaram e eu não falei com ele, porque eu falei: "Por amor de Deus, eu não posso estar relacionado a esse uso descarado da imagem dele." Fiquei superconstrangido. E ele estava bravo, bravo, bravo. O Rodolfo chegou, me apresentou o John e falou: "John, você não pode esperar aqui um pouco? Eu vou só pegar um papel e volto já." E eu e o John ficámos os dois sozinhos, não falámos uma palavra. Encostámos numa parede que estava lá e ficámos sem olhar um para o outro. Porque eu falei assim: "Pô, não vou ficar agora lambendo o cara." E ele estava passado, devia falar assim: "Esse aqui deve ser passe dessa coisa toda." Depois o Rodolfo chegou e eu falei assim: "Pronto, acabou. Nunca mais eu vou conhecer o John." Foi um desastre. Aí, no último dia, o John estava lançando um livro dele e o Augusto chegou para mim e perguntou: "Emanuel, tu já conheces o John?" "Não. Olha, Augusto, aconteceu aquilo, nós ficámos na parede lá, olhando para nada, um ao lado do outro." E aí o Augusto falou: "Não é possível. Tu és o sujeito mais parecido com ele que eu conheço, vem cá." Me pegou no braço e me levou. "John, esse aqui é o Emanuel que eu falei." Aí, o John arregalou o olho e percebeu que eu não fazia parte daquela coisa. Começámos a conversar... Aí começou a nossa relação.
O John Cage era aquela doçura, uma pessoa maravilhosa. O Merce é um sujeito firme. Um nobre. Ele está hoje com muitos problemas de locomoção porque se feriu durante muitos anos, durante a dança, e não se tratou. Eu mesmo brigava com ele, o John brigava com ele, todo o mundo brigava, falava: "Tem que ir a um médico, tem que cuidar disso." E ele não parava de dançar. A dança era a vida dele. E os ferimentos foram-se tornando cada vez piores. E crónicos.
O Merce é um sujeito muito charmoso, uma pessoa encantadora. O John não, era um sujeito retraído. Mas, curiosamente, o John tinha, do meu ponto de vista, mais tacto para lidar com as pessoas do que o Merce. O Merce é um homem muito culto. Às vezes a gente imagina o Merce como um daqueles típicos americanos que são tão especializados que não têm uma cultura ampla. E não é verdade. O Merce fala outras línguas, fala francês, um pouco de italiano... É um sujeito que conhece muito literatura, adora cinema. Às vezes nós jantamos juntos e passamos longas horas falando sobre cinema. Até hoje.
Normalmente ligo aos domingos de manhã, só para dar um abraço ou um beijo, ver como é que ele está. E ele está trabalhando. Ele atende o telefone, nós conversamos e tudo o mais, e eu sei que ele está produzindo. a

kathleen.gomes@publico.pt

A partir de uma conversa ao telefone com Emanuel Dimas de Melo Pimenta. Apesar de continuar a passar por Portugal, Emanuel Pimenta vive entre Nova Iorque e Locarno, na Suíça. www.emanuelpimenta.net

Sugerir correcção