Torne-se perito

Roosevelt

O que vai fazer o 44º Presidente dos Estados Unidos da América
na próxima quarta-feira? E na quinta? E na primeira semana?
E nos primeiros 100 dias? O 33º Presidente mudou a face da América. As circunstâncias são similares. As comparações são inevitáveis.
Por Teresa de Sousa

a No dia 4 de Março de 1933, um sábado do quarto Inverno da Grande Depressão, Franklin Delano Roosevelt convocou Hommer Cummings, o homem que escolhera para procurador-geral, e pediu-lhe para averiguar se o Trading with the Enemy Act, que remontava à I Guerra e que dava poderes especiais ao Presidente em matéria de economia, se mantinha ainda em vigor. Chamou depois o futuro secretário do Tesouro, William Woodin, e perguntou-lhe de quanto tempo precisava para preparar legislação que permitisse pôr ordem na banca. O democrata chegara a Washington para tomar posse como 33º Presidente dos Estados Unidos com dois objectivos imediatos: convocar o Congresso para uma sessão de emergência e decretar um feriado bancário de uma semana. Era urgente pôr fim ao pânico que se apossara do país e travar as falências em catadupa dos bancos (entre 1929 e 33, quatro mil fecharam as portas). Atribuídas as duas tarefas, partiu tranquilamente para a cerimónia inaugural no Capitólio.Cummings passou o dia no Departamento de Justiça. Woodin correu para o Departamento do Tesouro, onde encontrou o seu antecessor ainda a limpar a secretária. Ambos regressariam nessa mesma noite à Casa Branca para informar o Presidente de que poderia recorrer, se quisesse, à velha legislação da I Guerra e que seria possível ter um projecto de lei pronto até quinta-feira.
No dia 9 de Março, a Câmara dos Representantes levou 43 minutos a aprovar a nova lei sem que uma só cópia lhe tivesse chegado às mãos. Passaria no Senado algumas horas depois. Poucos republicanos votaram contra.
Ninguém tinha a certeza de que as coisas iriam funcionar. Não havia um Plano B. Apenas Roosevelt estava confiante. Contava, como era habitual, consigo próprio. Na noite de domingo, na sua primeira Conversa à Lareira transmitida para todo o país através da rádio, disse aos americanos que podiam confiar no Governo, que era mais seguro devolver as suas poupanças aos bancos do que deixá-las debaixo do colchão e que deviam comportar-se como patriotas. "Nenhum outro discurso na história alguma vez suscitou uma tamanha vaga de entusiasmo e de boa vontade", escreveu Jim Farley, que foi um dos seus principais assessores na Casa Branca.
Quando os bancos reabriram na manhã seguinte, as bichas que se formaram à porta eram para fazer depósitos. Quando a Bolsa reabriu no dia 15 de Março, as acções subiram 15 por cento, uma subida histórica. Um mês depois, oito em cada dez bancos tinham sido salvos da falência.
FDR salvara o capitalismo em oito dias.
"Era um génio a utilizar o senso comum, recorria a argumentos cristãos, terra a terra, para os convencer [aos americanos] do seu dever de ajudar um vizinho em dificuldades", escreve Charles Peters, o fundador e primeiro editor do Washington Monthly que ainda o conheceu. "Conseguia tirar o melhor das pessoas."
A sessão especial do Congresso apenas chegaria ao seu termo nas primeiras horas do dia 16 de Junho, depois de terem sido aprovados 15 pacotes legislativos para relançar a economia, acudir aos que tinham sido mais afectados pela crise, pôr o sistema financeiro a funcionar de novo e lançar as primeiras pedras de um sistema de segurança social que perdurou até hoje. "Em 100 dias, FDR tinha reinventado o Governo americano através de políticas ousadas e inovadoras, de discursos brilhantes e de uma empatia com os americanos que nunca mais foi igualada", escreve Jonathan Alter no seu livro de 2006 The Defining Moment: FDR' Hundred Days and the Triumph of Hope.
Um gabinete banal
A Administração que escolhera para o seu primeiro mandato não tinha gente particularmente notável. Roy Jenkins, o político britânico que escreveu sobre ele uma pequena mas maravilhosa biografia, descreve-a como incluindo alguns fiéis do Partido Democrata, amigos e colaboradores em quem confiava independentemente do que pensavam, e dois ou três antigos republicanos que viriam a revelar-se os mais eficazes. Entre eles, a primeira mulher a integrar uma administração americana, Frances Perkins, que escolheu para secretária do Trabalho e que viria a pôr de pé as traves mestras do New Deal. Não era a "equipa de rivais" de Lincoln, nem a "equipa de sonho" de Kennedy. Mas era uma equipa de gente que se portou à altura.
O programa político e o modo de o concretizar também não eram particularmente claros, nem sequer na sua filiação ideológica. Resultavam, escreve Jenkins, de uma mistura de "experimentação, intuição e alguma confusão". Roosevelt sabia apenas para onde queria ir. Como sempre, confiava totalmente em si próprio.
Em 1931, quando era governador de Nova Iorque e o seu estado, como todos os outros, fora brutalmente fustigado pela crise, convocou a legislatura e fixou em poucas palavras a sua nova filosofia para a sociedade americana. "Considero, de uma forma geral, que a sociedade moderna, agindo através do seu governo, tem a obrigação de impedir a fome ou a necessidade desesperada de qualquer dos seus cidadãos que tentam manter-se à tona, mas não o conseguem. (...) Para esses cidadãos no infortúnio, a ajuda tem de ser garantida pelo governo - não como uma questão de caridade mas como uma questão de dever social."
No discurso de aceitação da sua nomeação pela Convenção Democrata de Chicago, em Junho de 1932, anunciara: "Nas quintas e nas grandes metrópoles, nas pequenas cidades e nas aldeias, milhões de cidadãos alimentam a esperança de que a forma como viviam e pensavam não tenha desaparecido para sempre. Não podem nem terão de esperar em vão. Eu prometo-vos e prometo a mim próprio um New Deal para o povo americano."
Na campanha avisara que a sua política seria "tão radical como a Constituição".
Salvar as pessoas
Salvos os bancos, era preciso salvar as pessoas.
No dia 16 de Março, enviou ao Congresso a primeira verdadeira lei do New Deal, escreve Jean Edward Smith na sua recente e monumental biografia FDR - o Agriculture Adjustment Act. A situação nos campos era dramática. Os agricultores perdiam as suas terras para os bancos a um ritmo alucinante. A miséria e o desespero alastravam. Era preciso fazer subir os preços (que haviam caído 53 por cento entre 29 e 33) e, com isso, os rendimentos dos agricultores, através da redução dos excedentes. Roosevelt pensava que resolver o problema agrícola teria um efeito imediato em todos os outros sectores da economia. A nova lei "tinha muitas das características da futura Política Agrícola Comum, que nasceu um quarto de século depois. Os excedentes eram retirados do mercado através de pagamentos directos aos agricultores para não aumentarem a produção de trigo, milho, algodão e tabaco", lembra Jenkiens, que foi comissário europeu.
O resultado foi dos mais espectaculares do seu primeiro mandato.
Era urgente começar a combater o desemprego. A 31 de Março, o Congresso aprovaria sem dificuldade o Civilian Conservation Corps, um gigantesco programa que, em Junho, já empregava 500 mil jovens na preservação dos parques naturais, no combate às inundações e na prevenção de incêndios, na construção de reservatórios de água ou pequenas barragens. Nessa altura, o Governo federal não tinha a pletora de agências de que hoje dispõe para executar as suas políticas. FDR chamou o Exército (a esquerda acusou-o de estar a copiar Mussolini) e encarregou-o de organizar a tarefa. No dia em que tomou posse tinha avisado que, se preciso fosse, combateria a Depressão como se de uma invasão estrangeira se tratasse. O programa manter-se-ia até 1941, quando o destino dos jovens passou a ser a guerra na Europa.
John Meynard Keynes ainda não tinha escrito a sua Teoria Geral do Emprego quando Roosevelt fez aprovar no Congresso a mais gigantesca obra pública de combate à recessão. O Tennessee Valley Authority era um vastíssimo esquema de desenvolvimento regional financiado pelo Estado para domar as cheias e construir barragens numa das regiões mais pobres do país. Apenas 3 por cento dos agricultores dos sete estados atravessados pelo rio Tennessee tinham luz eléctrica. Foi adoptado em 18 de Maio e foi um dos maiores sucessos da sua Administração. O republicano Joseph Martin do Massachusetts chamou-lhe megalómano e comunista. FDR retorquiu-lhe: "Não sei o que é, mas seja lá o que for que digam que é, vai saber maravilhosamente às pessoas que vivem no vale do Tennessee."
A legislação que fez aprovar no Congresso criou um salário mínimo, um seguro de desemprego, salvou muitas famílias de perderem as suas casas, dotou o país de uma rede gigantesca de infra-estruturas, escolas e hospitais.
Nem tudo correu bem. Nem tudo teve o êxito desejado. Mas, em 100 dias, Roosevelt tinha convencido o Congresso a operar uma revolução. "Nunca até então fora vista uma tal concentração de actividade legislativa e de criação de novas agências [federais]", escreve Jenkins. "A inconsistência que muitas vezes se critica ao New Deal nunca foi um problema e pode mesmo ter sido uma grande virtude", escreve Amity Shlaes do Council on Foreign Relations. "'Através de audaciosa e persistente experimentação', a frase que o próprio Roosevelt cunhou para descrever a sua acção, conseguiu-se o objectivo pretendido: a recuperação económica e social do país." Jonathan Alter sustenta que "a principal doutrina do New Deal foi a experimentação". Hoje chamar-lhe-íamos pragmatismo.
Em 1935, o Congresso aprovaria o pacote legislativo que finalizaria o New Deal. Para fixar as relações laborais e os direitos dos trabalhadores, para criar uma rede pública capaz de prover às pessoas nas suas fases de maior necessidade, incluindo as pensões de reforma e o subsídio de desemprego; para reorganizar a Reserva Federal e reforçar os poderes federais de supervisão e regular os mercados financeiros.
Em 1936 os jornais do magnata da imprensa William Randolph Hearst chamavam-lhe "o candidato de Moscovo". Venceu com 90 por cento dos votos do colégio eleitoral. "O teste ao nosso progresso não é se acrescentamos à abundância dos que têm muito; é se garantimos o suficiente àqueles que têm demasiado pouco", disse no seu segundo discurso inaugural. Em 1940, o candidato republicano que derrotou, Wendell Wilkie, era um defensor do New Deal.
Um herói cheio de defeitos
Quando, no dia 16 de Junho de 1933, o Congresso suspendeu finalmente os trabalhos, Roosevelt fez aquilo que sempre fazia antes ou depois dos grandes momentos e das grandes decisões: foi velejar. Partiu em direcção à sua casa de férias na ilha de Campobello, já na costa do Canadá. Com os filhos como de costume, mas, desta vez, seguido por dois destroyers, um cruzador e dois barcos com um batalhão de jornalistas. Voltava pela primeira vez a Campobello desde que, no Verão de 1921, a poliomielite o atacara e o deixara definitivamente numa cadeira de rodas.
Sem dizer nada a ninguém, tinha resolvido disparar um torpedo contra a Conferência Económica e Monetária Mundial que reunia em Londres as delegações de 60 países para negociar um novo acordo monetário. Na tarde do dia 30 de Junho, chamou os jornalistas para uma conversa informal e explicou-lhes as suas intenções para o dólar: não aceitaria qualquer indexação da moeda que beneficiasse outros e prejudicasse a América. Tenciona libertar o dólar do padrão ouro.
O enviado do New York Times, Charles Hurd, conta que, quando lhe perguntaram se poderiam citá-lo, disse que não. Mas acrescentou: "Claro que, se assinarem as vossas histórias de Campobello, toda a gente vai acreditar em vocês."
O seu subsecretário de Estado do Tesouro, que participava na conferência de Londres e que apenas recebia instruções contraditórias de Washington, demitiu-se. Um dos seus amigos e apoiantes de sempre chegou a dizer que a sua decisão era "o fim da civilização ocidental". Por vezes era arbitrário e contraditório. "Se alguém soubesse como é que nós fixámos o preço do ouro, quase à sorte, entraria em pânico", escreveu mais tarde o seu segundo secretário do Tesouro (por muitos anos), Henry Morgenthau. Chegou a ser arrogante e autoritário no seu segundo mandato. "Um herói que tinha algumas características muito pouco heróicas", descreve-o Jenkins. "Com uma calma absoluta nas decisões estratégicas."
Franlink Delano Obama
Não é segredo que o Presidente eleito tem andado a reler a história do maior Presidente americano do século XX. Quer perceber, confessam os seus assessores, a forma como agiu nos seus primeiros 100 dias e a forma como soube transmitir ao país a esperança contra o medo, a confiança contra o desespero.
Se se der ao trabalho de consultar a imprensa da época, verá que não foi a frase do seu primeiro discurso inaugural que o mundo sabe de cor aquela que fez as manchetes do dia seguinte: "A única coisa de que temos de ter medo é do próprio medo." Foi preterida a favor de outra: "Acção e acção agora."
Barack Obama já anunciou que decidirá o destino de Guantánamo no primeiro dia. Quer o Congresso a trabalhar dia e noite no seu American Recovery and Reinvestment Plan. Sabe que joga muito do seu capital político nos primeiros 100 dias de governo. Não apenas por causa da dimensão da crise, mas porque, para ele, a fasquia foi colocada muito mais alto. À altura de FDR. É com Roosevelt que a História o medirá.
Compreende-se porquê.
A economia americana, como em 1933, está à beira do abismo, concluindo um ciclo de expansão de uma forma tão abrupta como aquela que pôs fim à euforia bolsista dos loucos anos 20 e que abriu as portas à Grande Depressão. A esperança que a América deposita nele é idêntica àquela que investiu em FDR. Tem ao seu alcance a oportunidade de forjar um novo paradigma económico e social, um "New New Deal" que inaugure uma nova era. E se a palavra e o temperamento foram as duas grandes armas que permitiram ao 33º Presidente inspirar os americanos e devolver-lhes o futuro, a palavra e o temperamento levaram Obama à Casa Branca.
A América está a anos-luz das tristes e desesperadas filas por um prato de sopa que foram o retrato da Grande Depressão. Em boa medida, graças à resistência do New Deal, que conseguiu sobreviver a todos os ataques ideológicos, a dimensão do sofrimento humano nunca atingirá nada de parecido. Graças a Roosevelt, o governo federal dispõe hoje dos meios necessários para agir em larga escala.
Mesmo assim a tarefa de Obama talvez não seja mais fácil.
Se FDR pôde esperar até 1938 para se voltar para o mundo e o salvar do fascismo, Obama tem duas frentes de batalha simultâneas. Internamente, terá de provar que vai ser possível pela segunda vez conciliar a urgência do combate à crise com um novo New Deal para a sociedade americana. Externamente, tem de mostrar que mudou a relação da América com o mundo.
Como Roosevelt, possui o dom de inspirar. Como Roosevelt, dispõe de uma ampla maioria democrata no Congresso. Mesmo que as figuras de Lincoln e de Kennedy pairem sobre a cerimónia inaugural da próxima terça-feira nas escadarias do Capitólio, serão as palavras de Roosevelt no seu primeiro discurso inaugural que provavelmente servirão de inspiração às suas.

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