Torne-se perito

A novíssima arquitectura do Novo Mundo

O que aproxima um túmulo formado por quatro vigas, no Paraguai, de uma casa sobre quatro pilares para um artista conceptual paulista? Ou um pavilhão numa cidade de cem habitantes no Uruguai, pago pelo Presidente Hugo Chávez, e a reconversão urbana de uma antiga região industrial de 300 hectares, no Brasil? Será simplesmente a proximidade geográfica?

a Para portugueses e espanhóis, a América a sul dos Estados Unidos, onde se instalaram a partir do século XVI, é ainda o Novo Mundo. Há no imaginário ibérico uma abertura ao encantamento latino-americano que não se explica pela atracção pelo exótico, mas que se exprime num forte desejo de que os antigos territórios coloniais transcendam a história. E foi precisamente durante o desenvolvimento da arquitectura do século XX que surgiu um desses momentos, quando alguns dos seus arquitectos romperam a hegemonia da cultura centro-europeia e revelaram, com a sua obra, uma dimensão inexplorada para a prática arquitectónica.Oscar Niemeyer, no Brasil, Luis Barragán, no México e Carlos Raúl Villanueva, na Venezuela (entre os mais óbvios), protagonizaram movimentos locais dentro da grande cultura moderna que vingou a partir da Segunda Guerra Mundial para definhar no arranque dos anos 70, década da primeira crise petrolífera e do endurecimento dos regimes políticos na região. O que pareceu, numa perspectiva externa, um período fugaz correspondeu, afinal, a um processo demasiado enraizado, como se percebe hoje pela forte presença da cultura moderna nesses países. Em Lisboa, o encontro da VI Bienal Ibero-Americana de Arquitectura e Urbanismo, que decorreu esta semana, distribuída pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica, sede da Ordem dos Arquitectos, Associação de Turismo de Lisboa e Faculdade de Belas-Artes, comprovou a forte matriz moderna que unifica as culturas arquitectónicas dessa parte do continente americano.
A questão que se poderia colocar a partir daqui é: será que essa marca se reverteu numa arquitectura local cuja identidade poderíamos reconhecer nas práticas contemporâneas? Tratando-se de culturas novíssimas, porque decorrentes dos movimentos de independência do século XIX, que puseram um fim ao ciclo colonial nesta extensa região, a modernidade confunde-se naturalmente com a própria expressão da tradição. Isto é, o que para as culturas europeias, dentro da sua diversidade, representou uma etapa histórica para os países latino-americanos emergiu como um desígnio. Criaram-se, assim, condições para o aprofundamento da cultura moderna na exploração dos seus aspectos mais genuínos: o sentido progressista, o aprumo tecnológico, a consciência social. São enunciados que ouvimos e vimos expostos durante as conferências realizadas no âmbito da bienal - principalmente as que agruparam (de formas anacrónicas) as categorias Mulheres e Jovens. Torna-se, portanto, determinante mapear a reacção dos arquitectos mais jovens a essa herança.
É óbvio que não existe uma arquitectura "feminina", como também não existe uma arquitectura "jovem" ou emergente; o que existe são grupos heterogéneos que trabalham com uma realidade muito distante da europeia, e ainda do interior de uma cultura moderna. A especificidade dos problemas regionais também propicia afinidades: um crescimento urbano explosivo a partir da segunda metade do século XX, que se traduz em carências habitacionais e infra-estruturais; a concentração de riqueza numa pequena elite; a escassez de recursos. Tem sido, aliás, sobre este último aspecto que se tem argumentado a favor de uma excepcionalidade da produção latino-americana, colocando o acento numa "arquitectura pobre" e de emergência.

ParaguaiSolano Benitez

O paraguaio Solano Benitez, de 45 anos, um carismático arquitecto da (chamada) "jovem geração" que esteve em Lisboa, é frequentemente apontado como exemplo dessa arquitectura que trabalha com recursos reduzidos. O seu discurso assenta numa interpretação muito própria do sentido da tecnologia e do modo como esta se manifesta em ensaios artesanais de grande plasticidade. O recurso a um material local - o tijolo - é potenciado formalmente, mesmo recorrendo a uma mão-de-obra muito precária.No complexo de férias do Sindicato dos Trabalhadores da Electricidade em Ytú, Caacupé, Paraguai, há um domínio quase "gaudiano" do processo construtivo que confere à estrutura um pendor artesanal fortíssimo. A arquitectura de Benitez revela um carácter ancestral e telúrico e muito dificilmente a poderíamos imaginar fora do Paraguai. A Benitez interessa a inventabilidade que a técnica fomenta. Nesse sentido, não há técnicas mais pobres do que outras e, definitivamente, a sua arquitectura não se inscreve em nenhum "minimalismo" formal.
Benitez envolve ainda as suas obras em histórias privadas - relatos que variam entre as descrições antropológicas e intimistas e acrescentam uma elevada dose de mistério. É o que acontece na Casa de sua Mãe (Casa Abu & Font, Assunção), onde 14 adultos e 23 crianças se reúnem em torno de um acontecimento trágico, o rapto de uma tia. Mas as suas construções não alimentam a angústia, pelo contrário, são "espaços de felicidade", uma espécie de machine a bonheur, lúdica e introspectiva, que inclui a celebração da morte. Para o túmulo do seu pai, no Cemitério de Piribebuy, que demorou dez anos a desenhar, dispôs quatro vigas de betão, em forma de quadrado, ligeiramente elevadas do solo, revestidas no perímetro interior com uma superfície espelhada. Numa carta, descreve a um seu amigo: "Esta pequena obra, creio que tem um carácter exorcizador para mim; espero dela um efeito positivo na gestão relacional com todos os meus fantasmas."

UruguaiGualano+Gaulano Arquitectos
Mais abstracta dentro da filiação moderna convencional é a arquitectura proposta pelos irmãos Marcelo Gualano e Martín Gualano, com escritório em Montevideu, no Uruguai. Nascidos em 1967 e 1969, respectivamente, apresentaram o seu trabalho na bienal também inseridos no quadro Jovens. Dentro de um raciocínio liderado pela austeridade, os edifícios de pequena escala que produzem constroem mundos complexos, o que distingue a sua arquitectura do alinhamento "neo-moderno" mais óbvio.
Na Casa Buceo, uma habitação unifamiliar de baixo custo, a estrutura comporta já a composição formal e espacial do edifício. A casa é compacta e as relações com o exterior são filtradas a partir de elementos vazados. O betão é texturado e perfurado, adquirindo uma rugosidade quase expressionista.
Nas obras de Gualano+Gaulano Arquitectos, o uso de tijolo é também comum, recuperando uma prática construtiva de origem popular que entrara em declínio no Uruguai. Estruturas de betão são preenchidas com tijolos dispostos plasticamente numa lógica de "manipulação", como afirmaram em Lisboa. O Pavilhão Pueblo Bolívar, distinguido com uma menção honrosa - precisamente na categoria Jovem Autor -, obedece a este princípio. O edifício foi patrocinado pelo governo venezuelano, após uma visita ao país do Presidente Hugo Chávez. Confrontado com a invocação a Simón Bolívar, libertador da América Espanhola, que faz o nome deste pueblo de apenas cem habitantes, Chávez decidiu apoiar a construção de um centro cívico. O edifício segue a tradição moderna de pavilhão compacto, implantando-se linear e horizontalmente. A sua veia expressionista não se deve somente ao tijolo, mas é intensificada pelo volume "exagerado" dos lanternins ou através do desenho das gárgulas de betão.

BrasilUna Arquitetos

A pequena escala em que os irmãos Gaulano trabalham contrasta com os desafios de requalificação urbana de que se ocupam os arquitectos brasileiros que se deslocaram a Lisboa. Esta diferença reflecte condições distintas, mesmo tratando-se de países vizinhos. No Brasil, apesar das imagens de desordem e precariedade que incessantemente passam nas televisões europeias, estamos num país rico, que, todavia, enfrenta problemas sociais e urbanos extremos, também decorrentes da concentração de renda. Em São Paulo, os números atingem proporções delirantes: possui dez por cento da população do país e é responsável por 15,6 por cento do PIB, ocupando 0,09 por cento do território nacional. É para este contexto que trabalham os dois escritórios, formados durante os anos 90, que estiveram representados na bienal - Una Arquitetos e MMBB.Fernanda Barbara, da primeira equipa, trouxe a Lisboa o projecto de requalificação urbana dos bairros da Mooca e Ipiranga, na capital paulista. Trata-se de uma extensa área industrial desactivada, com 300 hectares, sujeita a uma forte pressão do mercado imobiliário, que procura apontar estratégias para a consolidação dos diversos tempos daquele lugar.
O plano aposta no redesenho das infra-estruturas urbanas, conjugando os transportes públicos, um novo sistema viário, um parque urbano vinculado à presença do rio Tamanduateí e um adensamento populacional. Contraria a ocupação dispersa e territorialmente espraiada característica de São Paulo. A densificação é parte da solução, que capitais europeias como Londres também procuram promover. No entanto, agora, os modelos seguidos na América do Sul começam a distinguir-se pela sua autonomia: o exemplo já não é oriundo dos tradicionais centros arquitectónicos (a Europa e os Estados Unidos), mas é de inspiração local, constituindo-se, assim, como uma das culturas actuais mais dinâmicas e que se afinam dentro de uma prática conjunta.

MMBB O mesmo pressuposto pode ser ilustrado a partir da racionalização dos recursos hídricos da região, um dos aspectos do projecto Vazios de Água, mostrado por Fernando de Mello e Franco, dos MMBB, e que parte do reaproveitamento dos "piscinões", grandes reservatórios de água existentes na cidade que impedem o alagamento das faixas urbanas no período das chuvas.
A importância destes projectos é formarem um capital de reflexão sobre a metrópole contemporânea, e este é um contributo que não se esgota regionalmente. De um modo mais pragmático, estes ideais perpassam para realizações de menor escala, como escolas públicas, caso do edifício para Campinas dos Una; ou casas como a residência Iran do Espírito Santo, São Paulo, dos MMBB, erguida sobre quatro pilares. Estamos num contexto com um passado histórico significativo no domínio das tecnologias de betão e aço. Um certo ascetismo formal resulta de uma aplicação rigorosa da técnica construtiva, encarada aqui como uma conquista cultural. É a partir deste momento que se pode começar a imaginar para lá do moderno no sentido literal e figurativo. Fortemente alicerçados nos mestres, de Vilanova Artigas a Paulo Mendes da Rocha, as chamadas novas gerações descolam e deixam de ser notícia pela sua novidade. O Novo Mundo reclama agora a sua ancestralidade, o que é uma conquista da idade madura.

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