Maio de 1968 teria existido sem a pílula?

A explosão estudantil de Paris mudou os costumes e, com eles, mudou as vidas. Mas não reinventou politicamente as sociedades. E a grande revolução sexual deve porventura mais à pílula do que à separação por sexos dos dormitórios nas universidades...

D iscutir com um "soixante--huitard" é muito difícil. Pela razão simples de que quem participa, mesmo como um anónimo manifestante, naquilo que se tornou um momento icónico da história do século XX sente não só que faz parte de um mundo à parte, como que lhe assiste uma espécie de superioridade moral. Talvez nunca ninguém se tivesse lembrado, numa televisão francesa, de, num programa de entrevistas, colocar uma pergunta gémea da celebrizada por Baptista Bastos: "Onde estavas no 25 de Abril?" Mas responder a onde se estava em Maio de 1968 teria o mesmo efeito de separação de mundos que o jornalista português procurava ao colocar a sua célebre pergunta.
Porém, a verdade é que - perdoe-se o exagero - o Maio francês talvez nunca tivesse existido se, entretanto, não se tivesse começado a vulgarizar a pílula contraceptiva. Não porque tudo tivesse começado em Nanterre, nos arredores de Paris, em Março de 1968, quando foi proibido o acesso dos rapazes aos dormitórios das raparigas, ou porque a primeira intervenção sonante de Daniel Cohn-Bendit tenha sido sobre os problemas sexuais dos jovens. Esses eventos não deixam de ser simbólicos, mas o que realmente permite perceber se o Maio de 68 foi apenas uma revolta festiva ou uma revolução com profundos efeitos nos 40 anos que desde então vivemos é distinguir a componente política da componente cultural do movimento. Por o fazerem tão poucas vezes é que é tão difícil discutir com um "soixante-huitard"...

Politicamente, como a generalidade dos protagonistas reconhecem, Maio de 68 foi um fracasso. Foi um fracasso em França, onde pouco depois o general De Gaulle reforçaria a sua já forte maioria. Foi um fracasso para os partidos tradicionais da esquerda, em especial para os comunistas, que a partir de então entraram, nos países ocidentais onde tinham influência, a decair progressivamente. Foi um fracasso para todos os muitos filhotes esquerdistas, primeiro para os que desgraçadamente enveredaram por um radicalismo que os levou ao terrorismo, quer para os que aderiram efemeramente a múltiplos movimentos esquerdistas (são raríssimos os que se mantêm nas mesmas posições e os que tiveram sucesso foram os que se tornaram moderados sem deixar de ser idealistas, desde o actual ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Bernard Kouchner, ao anterior MNE alemão, Joschka Fischer) . Nenhuma das bandeiras políticas do Maio de 68, da rapidamente frustrada aliança entre estudantes e operários à concretização das máximas gritadas na rua, vingou. Por isso Maio perdeu na frente política e não porque não tivesse sabido colocar a questão do poder, como defende Fernando Rosas: Maio de 68 pura e simplesmente não podia colocar a questão do poder senão não teria sido o que foi. De resto, basta recordar o fracasso de Mitterrand quando procurou fazê-lo numa assembleia de estudantes e lhe responderam que não era nisso que estavam interessados.

Onde Maio ganhou, sobretudo na Europa, foi na frente cultural. O mundo ordenado e cheio de tédio - como o definira pouco tempo antes da explosão um colunista do Le Monde - foi substituído por um mundo onde, em nome do antiautoritarismo, a contra-cultura se tornou a cultura dominante e a única politicamente correcta. Maio em Paris não foi a reedição do Julho de 1789, quando os revolucionários partiram à conquista da Bastilha, apenas uma "espécie de 1979 sócio-juvenil", como um dia escreveu Edgar Morin. Isso teve uma primeira expressão no domínio dos comportamentos, com a designada "libertação sexual", mas também com a quebra da maioria dos tabus e a proclamação do direito a dizer "não", do direito a desobedecer. Do direito a não ter o famoso e execrado tédio. Mudaram as relações familiares, a arte e a comunicação, como notou ao PÚBLICO Manuel Villaverde Cabral, se bem que nem sempre a recusa do tédio se tenha traduzido em mais felicidade, se o contestado consumismo não acabasse por ser substituído por um individualismo frequentemente hedonista e ainda mais consumista. Se bem que, como refere Manuel de Lucena, muita gente da sua geração tenha levado a revolução sexual a um ponto que hoje quem lamenta "são os filhos deles".
Mas se na Europa estes novos valores se tornaram tão dominantes que raros os contestam, no país que foi palco de alguns dos principais eventos que marcaram o ano-charneira de 1968, os Estados Unidos, o triunfo inicial da contracultura acabaria por desencadear combates políticos de tipo novo, ainda hoje conhecidos por "guerras culturais", que obrigaram à discussão dos fundamentos do próprio anti-autoritaritarismo sem limites. E talvez tenha sido por isso que um francês impossível de existir como Sarkozy, que também ele é, à sua maneira, um "soixante-huitard", tenha feito da luta contra a herança de Maio de 1968 um dos seus temas na campanha que o levaria à Presidência da República.

Por tudo isto é que ainda hoje se discute a herança de Maio de 68, mesmo entre os que ainda não tinham nascido. Por isso é que Cohn-Bendit tem necessidade proclamar, 40 anos volvidos, que "68 acabou, ganhámos!" ao mesmo tempo que Jean-Pierre Le Goff recorre aos romances de Michel Houellebecq e aos seus personagens que vivem num mundo desencantado e cínico, com o sentimento de pertencerem a uma geração sacrificada, obcecada pelo sexo e por recolher a sua identidade estilhaçada para criticar a cegueira de uma certa esquerda que, entretanto, permanecendo adolescente, não entendeu como as realidades do mundo e da economia mudaram desde que o tédio foi substituído pela tensão em sociedades que deixaram de ser tão afluentes como era, comparativamente, a França de 1968.

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