Essa palavra

Não não é essa palavra em que estão a pensar. Também não é aquela que atroa pesadelos eróticos de mulheres escarlates. Muito menos essa outra que ainda não houve coragem para perguntar a ninguém o que é que ao certo significa. Não esperem de mim palavras dessas quando escrevo em público. Essa palavra a que me refiro já foi palavra sinistra, já coube nela tudo e o contrário de tudo, mas desde Atenas aos Passos Perdidos teve e tem um sentido nobre. Democracia, diz-se. Tanto salsifré para chegar a uma tal banalidade? Pois é.
Pois é, mas outro dia revi um filme que não via há mais de 63 anos, em que essa palavra justificava duas cenas fortes que eu tinha completamente esquecido.
México, 1865. Uma das mais bizarras extravagâncias do colonialismo europeu no seu zénite. Como o México, independente desde 1820, andasse em permanentes reviravoltas entre conservadores católicos e radicais livre-pensadores, tropas inglesas, espanholas e francesas, a pretexto de contas de mau pagador, desembarcaram em Vera Cruz, em 1861, aproveitando o facto dos americanos estarem à guerra uns contra os outros (Guerra da Secessão) e não poderem socorrer, ao abrigo da Doutrina Monroe, o vizinho do sul, que, aliás, poucos anos antes tinham espoliado de um sexto do território.
Ingleses e espanhóis iam fazer de polícias mas os franceses tinham outras ambições. Em pleno Segundo Império (Napoleão III) dominar o mundo voltava a sorrir-lhes, como sorrira ao primeiro dos Bonaparte. Na América do Norte, tinham alguma influência no Canadá, embora a tivessem perdido no sul dos Estados ainda não Unidos. Dominar o México era cercar quem quer que viesse a ganhar a guerra civil americana. Do México, as tropas do Marechal Bazaine garantiam que os conservadores mexicanos só sonhavam com uma monarquia. Inventaram mesmo um plebiscito, em que 90% da população pedia um rei. Napoleão III juntou o útil ao agradável. Para se aproximar do imperador da Áustria, o célebre e "eterno" Francisco José, pediu-lhe emprestado o irmão mais novo, um jovem de 29 anos, Maximiliano de Habsburgo, ao que se dizia belo e louro como um deus (há até quem diga que é uma estátua dele que está no Rossio a fazer de D. Pedro IV, mas não vou para essa conversa). Parece que as qualidades intelectuais não eram tão brilhantes como as físicas e que Maximiliano acreditava sinceramente que os povos do México, que nem de reproduções o conheciam, o amavam desalmadamente. Em 1863, Maximiliano embarcou para o México (não falava uma palavra de espanhol) com a Mulher, Carlota, filha do rei dos belgas, Leopoldo I.
Benito Juárez (1806-1872), um índio, era o presidente eleito do México desde 1860. Fora ele quem decidira, em Julho de 1861, para salvar o país da bancarrota, suspender o pagamento das dívidas externas. Ainda venceu os franceses em Puebla (1862) mas mais tropas napoleónicas obrigaram-no a fugir da capital e a refugiar-se na futura Ciudad Juárez, na fronteira entre o México e os Estados que se estavam a unir. Maximiliano foi coroado imperador em 1864.
Apesar da sua ingenuidade, cedo se apercebeu que estava metido num vespeiro. Liberal, por formação ou convicção, decidiu ser magnânimo com o povo. Para desespero dos grandes senhores, assinou todas as reformas promulgadas por Juárez e recusou devolver à Igreja Católica os bens que Juárez lhe confiscara. Concebeu, depois, a sua jogada mais ousada: comprar Benito Juárez ou, dito de modo mais suave, oferecer-lhe o lugar de primeiro-ministro.
Para tanto, segundo a ficção e segundo o tal filme que vi com 9 anos, deslocou-se sem escolta à prisão em que mandara encarcerar Porfírio Diaz, jovem general de Juárez. É altura de dar nome aos bois. No meu filme, Porfírio Diaz era interpretado por John Garfield, esse admirável rapaz da rua que precedeu com mais efémera glória, mas igual talento, os futuros rebeldes de Hollywood: Brando, Dean, Newman.
Quando o Imperador - o inglês Brian Aherne, no papel da sua vida, por quem me apaixonei há 63 anos e por quem continuo apaixonado - lhe entrava na cela, Garfield ou Porfírio (como preferirem) não se mexia do canto em que estava sentado no chão e continuava a comer uma fritura tipicamente mexicana, enquadrado num grande plano deliberadamente insolente.
Maximiliano não se dava por achado. De pé, mas sem altivezes descabidas, perguntava-lhe o que é que afinal Juárez queria. Diaz: "Acabar com coisas que ele próprio suportou na pele. Educar, libertar e elevar o povo através da democracia". Resposta de Maximiliano: "Se assim é, tudo o que nos separa é uma palavra, General Diaz, porque, no resto, Benito Juárez e eu pensamos exactamente o mesmo". A palavra era a palavra democracia. Maximiliano concordava que em teoria podia ser sistema ideal, mas não funcionava porque "o povo a governar pode transformar-se rapidamente na maralha a governar". Por outro lado, um presidente tem que responder junto dos que o elegeram. Um rei está acima de eleitores. Um presidente pode ser pobre e cair em tentação. Um rei, como tem tudo, nada pede mais.
A pouco e pouco, o General Diaz fica sinceramente impressionado. Aceita ser libertado para transmitir a Juárez o convite do Imperador.
Passava-se a outra paisagem, mais desolada e mais frugal. Benito Juárez, interpretado por esse insuportável cabotino que, regra geral, foi Paul Muni, na terceira das suas personagens históricas depois de Pasteur e de Zola, vivia numa casa pobre a que presidia, omnipresentemente, o retrato de Lincoln, assassinado pouco antes, e ídolo do mexicano.
Juárez recebia friamente o amigo e friamente ouvia o que o outro exaltadamente lhe contava. Depois, muito devagar e muito "overacting", afirmava: "Maximiliano diz que só uma palavra o separa de mim. Só a palavra democracia. Porfírio, diz-me o que é que esta palavra quer dizer". Jovial e franco, John Garfield respondia: "Democracia?" (ri-se). "Quer dizer liberdade - liberdade para qualquer homem dizer o que pensa e defender o que acredita. Quer dizer igualdade de oportunidades".
Juárez interrompe-o, ainda mais severo: "Não. Isso não é nem pode ser o que quer dizer democracia. As coisas que tu disseste podem-nos ser dadas por Maximiliano, sem democracia. O que é que ele não nos quer dar?". Embaraçado, Garfield responde: "Só o direito de nos governarmos a nós próprios". Juárez esperava esse momento. Mais enfático do que nunca, agarrava-lhe na palavra e respondia: "Pois é esse, exactamente, o significado dessa palavra, Porfírio... O direito de cada homem se governar a si próprio e à nação em que vive. E como nenhum homem se pode governar com grilhetas, a liberdade escoa-se como água que cai das montanhas... Talvez seja só uma palavra, essa palavra democracia, que me separa de Maximiliano de Habsburgo, mas essa palavra é um abismo que nenhuma ponte pode atravessar. Representamos princípios inconciliáveis. Um de nós tem que morrer. Pensa ainda, Porfírio, que quando um rei governa mal muda o povo; mas quando um presidente governa mal, o povo muda de presidente". Diaz fica esmagado e diz que finalmente percebeu.
O que aconteceu: Juárez triunfou e o Imperador foi fuzilado em 1867, enquanto, na Europa, a Imperatriz debalde suplicava Napoleão III e o Papa Pio IX que lhe salvassem o marido. Com os Estados Unidos, os sonhos de Napoleão III foram-se e foram-se também as tropas francesas. Maximiliano podia ter fugido, mas não fugiu. Não quis abandonar o "seu povo".

Aos 9 anos, ainda não me deixavam ir ao cinema sozinho. Felizmente tinha uma Avó (materna) cinéfila, que todas as 5as Feiras não falhava uma matinée (só havia uma) acompanhada por um sobrinho, que era quase da idade dela. Democracia era uma palavra maldita para a minha Avó que a associava a Afonso Costa e aos desmandos republicanos. Ainda a ouço a pedir ao filho, numa das "eleições" de Salazar: "Vota em quem quiseres, mas não votes nos democratas. Democratas, nunca!". Para ela, democratas eram mais ou menos o que os comunistas foram para gente mais nova. Não a ouvi comentar muito as duas cenas que evoquei. O sobrinho ressonava ao lado dela. Eu, do outro lado, chorava baba e ranho vendo Maximiliano fuzilado, a ouvir La Paloma, que, por milagre ou comunicação telepática, Carlota também ouvia no seu palácio de Trieste, gritando: "Max!". Do filme foi tudo o que retive, como retive visceral antipatia por esse Juárez que o filme elevava a paradigma da democracia.
Mas hoje sei mais algumas coisas. Juárez - esse era o título do filme mas em Portugal chamaram-lhe A Derrocada de um Império - estreou-se em Nova Iorque, com pompa e circunstância (era, à data, a mais cara produção dos irmãos Warner) a 24 de Abril de 1939. A Portugal, só chegou, como disse, em Novembro de 1944.
É sabido que muitos filmes de propaganda aliada foram proibidos durante a guerra (como, de resto, o foram também os filmes de propaganda nazi) para não macular a nossa neutralidade. A partir do Dia D, e, sobretudo a partir da capitulação da Alemanha, esses filmes vieram em catadupa, para não macular ainda mais a suspeita reputação do salazarismo.
Mas Juárez, onde não havia nem aliados, nem alemães e se passava no século XIX, tão longe dessas guerras? Porque esteve cinco anos nas prateleiras? Engano de censores? Não, os censores não se enganaram. Porque a intenção do filme (rodado em 1938, concebido em 1937) era a exaltação da democracia, em anos em que esta tão ameaçada estava na Europa. As instruções da Warner aos argumentistas não podiam ser mais claras: "Os diálogos políticos e ideológicos devem inspirar-se no que dizem os jornais de hoje. Por detrás de Napoleão III e da sua aventura mexicana até uma criança deve poder reconhecer Hitler e Mussolini a apoiar Franco em Espanha".
A criança que eu era não o percebeu, mas é verdade que quando vi o filme já a Guerra de Espanha acabara há muito e já ninguém duvidava da derrota do Eixo.
À época, muita gente (Graham Greene foi um deles) considerava que as personagens mais fascinantes do filme eram Maximiliano e Carlota (interpretada por Bette Davis). O New York Times escrevia: "Juárez é claramente o herói da história. Maximiliano é o herói do filme":
Durante a rodagem e a estreia do filme, muitas mãos mexeram nele. Uns queriam puxá-lo mais para o lado da democracia de Juárez (que historicamente acabou bem ditador e bem demagogo, como Porfírio Diaz, que lutou contra Zapata e Pancho Villa), outros para o lado de Maximiliano. O vilão é claramente Napoleão III, que fala do "governo dos rebanhos" e tem tiradas que parecem saídas do Mein Kampf. Mas ninguém em Hollywood podia ou queria ser muito claro nesses anos 30 finais. Daí a ambiguidade desta obra, que me esclareceu retrospectivamente algumas coisas que nunca entendera bem, nem no cinema americano que precedeu a guerra nem nessa palavra que determinou o fuzilamento de um "reizinho".
No plano final, Juárez ao passar perante o caixão de Maximilano pede-lhe: "Forgive me". Perdão pela palavra ou perdão pela coisa?

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