Das liberdades de Dezembro às libertinagens do Carnaval

É no reino das máscaras que entramos quando visitamos esta exposição que documenta o ciclo dos rituais de Inverno, em Trás-os-Montes. É um universo de cor, fantasia e excesso, para iludir os rigores do frio e da sociedade

a O timing não podia ser mais apropriado. Em época de Carnaval, o Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto, apresenta a exposição Rituais de Inverno com Máscaras, que em Dezembro de 2006 marcou a reabertura do Museu do Abade de Baçal, em Bragança, com a sua nova galeria de exposições temporárias.Co-organizada por estes museus e pelo Instituto dos Museus e da Conservação (IMC), a exposição é simultaneamente uma homenagem ao etnógrafo Benjamim Enes Pereira, já que foi este discípulo de Jorge Dias e Ernesto Veiga de Oliveira que recolheu e estudou a realidade que se esconde (e ao mesmo tempo se revela) por detrás das coloridas máscaras e figurinos, quase todos oriundos do acervo do museu de Bragança (algumas peças vêm do Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, a cuja fundação Benjamim Pereira esteve também ligado).
É no mundo simbólico e mágico do Carnaval que entramos quando transpomos a porta da exposição no Soares dos Reis. Logo à direita, uma meia dúzia de máscaras-esculturas transportam-nos para um artesanato popular de tempos ancestrais. Estas não são ainda as máscaras de usar na função carnavalesca. São antes objectos de decoração, que por si só encerram "um conteúdo simbólico que não se apaga após a actuação do mascarado", explica Benjamim Pereira no seu livro Máscaras Portuguesas (1973), antes se integram na colectividade, onde são objecto de cuidados especiais.
Diabos populares
São todas feitas de madeira, têm cornos proeminentes, olhos côncavos e esbugalhados, narizes porcinos, dentes de susto ou gargalhada... São peças que representam bem o imaginário transmontano, de ressonâncias celtas, em particular de terras de Bragança e de Vinhais, onde foram recolhidas.
Depois destas boas-vindas para uma viagem como se fora num comboio-fantasma de feira antiga, deparamo-nos com o núcleo central da exposição: a instalação de dezenas de caretos - as máscaras e os figurinos da famosa Festa dos Rapazes de Podence, em Macedo de Cavaleiros. São máscaras maioritariamente feitas de madeira, mas também podem ser de folhas de zinco, vime, palha, cortiça ou mesmo borracha, com todas as cores e expressões que a imaginação popular "demoníaca" permitir.
"A máscara esconde a identidade de quem a usa, e representa alguém ausente, um espírito", explica Paulo Costa, do IMC, na visita guiada de abertura da exposição. Cria, por isso, um mundo de liberdade de expressão, de libertação de energia aos caretos e aos "chocalheiros" que a usam. Vestem fatos normalmente confeccionados com retalhos e desperdícios de vestuário, franjados de cores vivas, verde, vermelho, preto, amarelo... Numa descrição dos caretos e chocalheiros que usam estas vestimentas nos três dias de Carnaval, Benjamim Pereira diz que eles se apresentam "aos olhos das gentes das aldeias em que sobrevivem como uma verdadeira entidade mágica, sombria e inquietante, temida mas necessária".
Rituais de passagem
As Festas dos Rapazes são rituais de passagem à idade adulta, com o seu remoinho de ruído, desordem e muitas vezes também violência, nomeadamente sobre as raparigas. "Assumindo inteiramente uma natureza diabólica, a aparição inquietante [dos Rapazes] impõe pelo terror a presença de um ser que, momentaneamente, se coloca fora da lei e das convenções sociais, que escapa às normas quotidianas e autoriza tudo o que é interdito", explica Benjamim Pereira. "Resguardados por um sentimento de imunidade, permitem-se sobretudo certas liberdades licenciosas com as mulheres, arrogando-se o direito de entrar nas casas e levar daí o que lhes apetece."
Esse ritual, que nos últimos anos tem vindo a ser recuperado na sua dimensão mais etnográfica em várias terras de Trás-os-Montes, está também documentado na exposição através de um filme de Catarina Alves Costa e Catarina Mourão, com o título homónimo Máscaras, Rituais de Inverno (produção Laranja Azul, 2001). A sala principal da exposição exibe um digest de quatro minutos do documentário, que pode ser visto na sua versão integral de 40 minutos num pequeno auditório ao lado. E há também uma selecção de fotografias feitas pelo próprio Benjamim Pereira, entre 1999 e 2001, sobre estes rituais, ao lado de instrumentos musicais (gaitas-de-foles, bombos, caixas e macetas) e de alfaias de cozinha associados às diferentes celebrações da festa.
Ainda que seja o Carnaval a época que mais imediatamente se associa ao imaginário dos caretos e "chocalheiros", eles (e a exposição no Soares dos Reis) entram no calendário ritual bem mais cedo, logo no início de Novembro, no Dia dos Mortos (dia 1), passando pelo Natal (pela Festa de Santo Estêvão) e pela amálgama de rituais religiosos e profanos que esta quadra assume no imaginário transmontano. O ciclo só se completa no final da Quaresma e na Páscoa, com a morte (a Queima) da Morte e do Diabo que personaliza a sua dimensão invernosa, figuras também representadas na exposição em dois fatos de flanela, um preto, outro vermelho, onde se inscrevem as figurações mais tradicionais dessas duas entidades, com o inevitável esqueleto e cornos.
Terminado o ciclo do Inverno, os rapazes (e as suas raparigas) vão à sua vida.

Exposição

Rituais de Inverno com MáscarasPORTO Museu Nacional Soares dos Reis. Tel.: 223393770.
3.ª, das 14h às 18h; 4.ª a dom., das 10h00 às 18h00. Até 20 de Abril.

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