Torne-se perito

Sheiks

Os Sheiks estão de volta e, durante o mês de Novembro, fixam residência no São Luiz para, misto e tertúlia e ensaio de garagem, cantar e contar uma história que merece ser cantada.
A dos "Beatles portugueses". A deles.

a Carlos Mendes, Paulo de Carvalho, Edmundo Silva e Fernando Chaby. Os quatro alinhados numa mezzanine do Teatro São Luiz para as fotografias do P2, minutos depois de terminarem um ensaio para as actuações que, a partir das 23h30 desta noite e durante todas as quintas, sextas e Sábados de Novembro, manterão no palco do Jardim de Inverno do Teatro São Luiz, em Lisboa.Os quatro Sheiks na mezzanine. Trocam piadas, "picam-se" mutuamente, ironizam com as dores de idade que não lhes permitirão manter a pose por muito tempo. Olhando em volta, um deles comenta que o cenário em que o repórter fotográfico os coloca se assemelha à capa de Please Please Me, o álbum de estreia dos Beatles. Sabíamos que sim. Era essa, de resto, a nossa intenção. Não eram afinal os Sheiks os Beatles portugueses? Não foi esta a banda que, na década de 60, desde a lisboeta Avenida de Roma, arrastou por Portugal fora um pouco do ritmo, da electricidade e irreverência da swinging London?
Entre 1965 e 1967, criaram dois dos primeiros clássicos da pop portuguesa, Missing You e Tell me Bird. Seguiram os Beatles em estética e loucura juvenil - cenários de histeria de fãs frente a hotéis incluídas - e protagonizaram a primeira tentativa de internacionalização do rock português quando, em 1967, foram convidados a montar residência durante algumas semanas num clube parisiense, o Le Bilboquet, substituindo os Troggs.
Nesse Portugal que, quanto a cultura pop, era zero, nesse país onde, como conta Carlos Mendes, "o "Beethoven" [teclista dos Jet, uma das melhores bandas do período] tinha que esconder o cabelo comprido sobre o casaco para não ser insultado na rua", os Sheiks foram os mais famosos representantes da vaga yé-yé que pintalgou de alguma cor o castrante cinzentismo de então. Em cima do palco, terminavam When I"m Asking You exclamando girl my lust is growing for you. Fora dele, não convinha que a luxúria transparecesse - no país onde a juventude podia ser "alegre sem ser irreverente", como se lia em cartazes afixados à entrada dos famosos concursos Yé-Yé no Monumental, em Lisboa, um beijo trocado à vista desarmada era um perigoso acto subversivo.
Pelo sucesso que tiveram, inédito até então na pop nacional, pelas memórias que deixaram em quem os acompanhou em concerto, na rádio ou televisão, e pelo reconhecimento de que, na meia dúzia de EPs que compõem a sua carreira discográfica, se descobre um fascinante misto de urgência e criatividade, os Sheiks representam um marco de uma época e, ao mesmo tempo, a época ela mesma.
E agora?
Quarenta anos depois, muito depois das carreiras a solo de Paulo de Carvalho e Carlos Mendes se terem tornado maiores que o brilho da banda que os lançou, estão juntos novamente.
Não é uma reunião como a de 1979, quando editaram um álbum com os seus clássicos regravados (Pintados de Fresco) e um outro de originais em português (Sheiks Sem Cobertura). Não é um encontro como os dos últimos tempos, em que estimulados por convites de antigos admiradores, se juntaram para concertos esporádicos em Santarém ou Viseu.
Enquanto decorre a sessão fotográfica, Paulo de Carvalho conta histórias mirabolantes de um amigo que, nos anos 70, tinha por hábito fazer-se convidado para festas na embaixada mexicana, arrastando consigo o argentino Yazalde, o famoso avançado argentino do Sporting. Durante a entrevista, Carlos Mendes recorda uma irreverência inocente que passava, por exemplo, por transformar reportagens radiofónicas com senhores muito formais que nada percebiam de música pop em exercícios nonsense: "Lembro-me de uma entrevista que a malta fez na Rádio Graça em que o repórter que nos ia entrevistar tinha uma voz de falsete. Quando chegámos aos estúdios, ele transforma-se e, com uma voz grave e colocada, começa a apresentar-nos". Resultado: "Uma barracada". "Desatámos a gozar com ele, a responder com voz fininha coisas que nada tinham a ver as perguntas".
Um pouco antes, víamo-los em palco a afinar vozes e o som dos instrumentos. Paulo de Carvalho na bateria, sempre preparado para lançar um comentário irónico. Carlos Mendes, mãos no teclado, a responder às tiradas do amigo com exercícios de voz, transformando uma frase banal como "a sala está vazia" em melodia percorrendo várias oitavas. Edmundo Silva e Fernando Chaby, sentados com o seu baixo e a sua guitarra a tiracolo, discretos mas preparados para entrar numa canção, qualquer canção, a qualquer momento. Ouvimos-lhes o Be Bop a Lula de Gene Vincent, ouvimos-lhe a Ain"t She Sweet popularizada pelos Beatles com ritmo seguro e melodias vocais intactas.
Peça de teatro musical
É precisamente nisto, nas histórias por trás da música e na música ela mesma, que consistirão os espectáculos do São Luiz. Não lhes chamam concertos. A expressão correcta, nas palavras de Paulo de Carvalho, é "tentativa de uma peça de teatro musical": "A nossa história contada por nós próprios".
Está explicado o grande escadote plantado no lado esquerdo do palco e as caixas de instrumentos nele espalhados. São parte integrando da muito simples cenografia idealizada por António Feio para o espectáculo. Aliás, se o actor conseguir conciliar os horários da peça que protagoniza neste momento, Os Melhores Sketches dos Monty Python, em cena no Casino de Lisboa, com as actuações dos Sheiks, pode até ser que o vejamos, guitarra em punho, a acompanhar a banda - como refere Paulo de Carvalho, "temos um guião a cumprir, mas também uma abertura total ao improviso.
A ideia de fundo é fazer a síntese entre um ensaio de garagem e uma tertúlia onde se desfiam memórias e se promovem encontros. Paulo de Carvalho: "Durante cerca de uma hora e meia, tocamos as canções que compunham o nosso alinhamento da altura, onde as versões eram obrigatórias e onde, a determinado momento, passou a ser possível incluir coisas nossas. São umas 20 cantigas de muitos e grandes cantores e compositores. Lennon/McCartney, Beach Boys, Elvis, Carlos Mendes. Gente que, junta, fez música neste planeta". Carlos Mendes: "Quem tem de nós uma memória viva, quem se lembra de ouvir o Missing You na rádio ou de nos ver na televisão, decerto sentirá uma emoção a trespassá-lo. Tenho a certeza que isso acontecerá comigo, que vou ver uma pessoa com quem comecei a trilhar este caminho aos 13 anos e que não vejo há muitíssimo tempo, o Jorge Barreto [primeiro baixista dos Sheiks]".
Quando a última pergunta do P2 acabava de ser respondida, Fernando Chaby, o guitarrista responsável pela enérgica estridência eléctrica, qual "rockabilly ácido", de canções como Try To Understan" ou I"ve Got To Give Up, aproxima-se do gravador. Quer definir aquilo que, para si, representam os Sheiks: "São a inocência da juventude e a esperança, mas acima de tudo, a paixão pela música e as faíscas que dela se libertam. Viver isso, hoje, é um acto criativo sem idade".
Não há como não compreender a paixão. Para Fernando Chaby, tal como para os restantes três, os Sheiks foram onde tudo começou. Aliás, de certa forma, foi onde tudo começou realmente na história da pop moderna portuguesa. É uma história que merece ser contada e, quatro décadas depois, eles estão de volta para o fazer.

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