Imortalizados vivos

E ao quinto dia, cinco "marines" e um enfermeiro da Marinha colocaram a bandeira americana no cimo do Suribachi, o monte que domina o pedaço de rocha e areia cinzentas a que os japoneses chamam Iwo Jima. Ainda iriam passar 35 dias - e milhares de corpos semeados pelas praias - para a conquista dessa terra vulcânica, mas uma fotografia tirada pelo fotógrafo Joe Rosenthal fez "o momento". E contra isso foi impossível medir forças.

Não interessava que os factos tivessem uma dimensão diferente da lenda - afinal, James "Doc" Bradley, Rene Gagnon, Ira Hayes, Franklin Sousley, Harlon Block e Mike Strand tinham sido o segundo grupo a hastear uma bandeira americana (um caprichoso general obrigou a uma troca; qual troféu pessoal, quis a primeira que tinha sido colocada...), tiveram "apenas" a sorte, ou o infortúnio, de terem ali um fotógrafo; e afinal, esse nem foi o momento de conquista, foram precisos mais 35 dias de inferno, que até mataram Franklin, Harlon e Mike.

A fotografia, contudo, estava para além dessas contingências da realidade. E James "Doc" Bradley, Rene Gagnon e Ira Hayes, os sobreviventes, foram alistados no mito para o resto das suas existências. Chegaram a ser convocados para aparecerem ao lado de John Wayne em "Sands of Iwo Jima" (Allan Dwan, 1949). Wayne era aquele que dizia sobre todas as coisas: "Se não é tudo a preto e branco, eu pergunto: "Porque diabo é que não é?"". Contra essas certezas, podia opor-se o que disse um dos "heróis" forçados: "Every jackass thinks he knows what war is". Qualquer tradução deverá significar sempre o mesmo: as razões de estado a esmagarem as razões individuais, a culpa pelos que morreram ou ficaram para trás, um fardo. Insuportável.

Um livro, "As Bandeiras dos Nossos Pais", escrito por James Bradley (filho de "Doc"), contou essa história em 2000. Um filme, "As Bandeiras dos Nossos Pais", de Clint Eastwood, com argumento de William Boyles Jr. e Paul Haggis, conta agora essa história.

O livro (editado em Portugal pela Magnólia - já agora: a tradução, aqui, é um automatismo; a revisão de texto inexistente) se fosse ele próprio o filme seria um pedaço de cinema clássico: narrativa linear, do passado até ao presente, e a tomada de conhecimento por um filho - o autor - da figura do pai. Sem alaridos, por pudor ou por não ter unhas para se aventurar pela vertigem do romanesco e da auto-consciência criativa, o escritor olha não como mestre da sua história, mas como repórter das histórias dos outros, figuras talhadas de um gesto na rocha. James "Doc" Bradley, o último desses "heróis" a morrer, esteve vivo até 1994 e rematava sempre os seus silêncios perante os filhos inquiridores com um: "É tão simples quanto isso".

O livro, para resumir, é assim. O filme é outra coisa, para, no fundo, até lhe ser fiel - ao livro.

Eastwood, com o trabalho de Boyles Jr./Haggis, troca as voltas, anda para a frente e para trás em três tempos: as cenas de batalha em Iwo Jima, a "tournée" dos heróis pela América a angariar fundos para o esforço de guerra e a actualidade. Atrasa até onde pode a figuração do "momento" - a fotografia no Suribachi -, e antes da guerra dá-nos primeiro o simulacro, com os três soldados (interpretados por Ryan Philippe, Jesse Bradford e Adam Beach) a subirem para cima do cume de Iwo Jima em "papier maché", num estádio a abarrotar, durante a "tournée" circense que percorreu a América.

Apodera-se, assim, de uma disposição reflexiva, cria interrupções, veda-nos acessos, constrói-se à volta de um vazio central, trabalha sobre um tempo sempre interrompido. A comparação que a revista Sight and Sound fez com o "Mundo a Seus Pés" de Orson Welles, esse "fantasma no festim do cinema clássico", como lhe chama, onde sucessivos portões e cortinas escondiam a Xanadu de "citizen" Kane ou rodeavam a revelação de um segredo, o tal, Rosebud, é, mesmo se exagerada, reveladora do que por aqui se tenta (e é todo um programa pensar também em Eastwood, a quem chamam o "último dos clássicos", como um "fantasma"...).

Compreende-se, pois, o gesto, a construção em "puzzle": para fazer de Bradley, Gagnon e Hayes figuras que o mito atirou para uma condição espectral, para uma morte em vida, corroídos pela sensação de impostura, a quem foi roubado o espaço e o tempo. "As Bandeiras dos Nossos Pais" integra, por aí, o núcleo mais agónico da obra do realizador Eastwood, alguém que em tempos foi o "homem sem nome" do "western spaghetti" - construção mitológica, portanto - e que vem fazendo reflexões sobre o heroísmo, atirando ao alvo e não raras vezes oferecendo o corpo à destruição (dessa pulsão terminal, o William Munny de "Imperdoável", filme de 1992, é uma das encarnações mais perfeitas, e pensa-se em "Imperdoável" em momentos de "As Bandeiras dos Nossos Pais").

No "puzzle" que monta Clint também explicita a passagem de testemunho entre gerações, a dos pais e a dos filhos. É um dos seus "temas" - recorde-se "As Pontes de Madison County" (1995). Mas tal como nesse filme também aqui isso é mais sublinhado do que integrado. Por esta peça do "puzzle", pelos obstáculos criados - é difícil sentir entre a actualidade e o passado o fluxo de uma existência -, o "puzzle" fala mais do que toca. Mas há personagem a guardar: Ira Hayes, índio e herói, dois fardos demasiado pesados para um homem só, e ele não aguentou... É uma figura do calvário e no seu abandono lembra-nos tanto o Forest Whitaker de "Bird", filme de 1988...

Compreende-se o gesto, dizíamos: é para escavar em profundidade a História enterrada - por aí o filme é a consciência clarividente do livro. Algures a meio da preparação de "As Bandeiras dos Nossos Pais", e nessa vontade de partir em direcção às profundezas, Eastwood decidiu olhar para este episódio da II Guerra Mundial através dos olhos do "outro": os japoneses. Ir mais além só podia ser ir mesmo de encontro aos mortos que vivem na memória das rochas de Iwo Jima. Mas essa é outra história, e essa obra-prima, "Cartas de Iwo Jima", é coisa tão crepuscular que já não é filme de guerra, é pura história de fantasmas (estreia a 22 de Fevereiro).

É, portanto, a mesma história.

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