ANTONIO TARANTINO A pintura dava-lhe demasiada liberdade

Antonio Tarantino tinha 54 anos quando deixou a pintura e se tornou dramaturgo, uma revelação multipremiada em Itália. Em Lisboa a convite dos Artistas Unidos, que têm duas das suas peças em cena, diz que o teatro tem aquilo de que precisa: regras. Por Vanessa Rato

Há quem precise de ser constantemente interpelado para conseguir falar. Antonio Tarantino, com toda a simpatia, gosta de monólogos, solilóquios com a ideia vaga de um interlocutor ao fundo. No dia em que chega a Lisboa, a convite dos Artistas Unidos, está sol. Com um sorriso afável, senta-se na esplanada da pastelaria Bénard, no Chiado, fato completo, colete incluído, e um cigarro aceso entre os dedos. A cada tantos minutos, um novo ataque de tosse. "Bronquite", diz com um aceno de mão. Nada que o impeça de continuar.
Ele vem ao que vem, e, neste caso, vem preparado para contar, uma a uma e por ordem cronológica, as histórias contidas nas histórias das suas peças de teatro. Se ninguém o interrompesse, começava onde tudo começou - com o divórcio de um artista plástico - e só parava hoje, em 2006.
"Quando comecei a escrever, ajudou-me a minha ignorância. A minha ignorância foi a minha ferramenta essencial", diz a dada altura.
Ano: 1992 - o ano do divórcio.
Habituado a partilhar atelier com a mulher, Tarantino separa-se. Sem estúdio alternativo e temporariamente impedido de pintar, começa a escrever. Assim, sem mais - e sem saber nada de teatro -, torna-se dramaturgo, uma revelação em Itália, autor de duas peças premiadas em apenas meses.
Está em todas as biografias: Stabat Mater, a primeira dessas peças, estaria concluída ainda antes do fim da Primavera; Paixão Segundo João, a segunda, nasceria quase de seguida.
Num caso como noutro, às primeiras palavras sente-se a intensidade de uma linguagem que agarra sem medo a pulsação dos bairros populares italianos. Quem fala são os seus habitantes. Personagens bíblicas transformadas em marginais, loucos e prostitutas mergulham o mundo na sarjeta para o devolverem à vida.
Stabat Mater - nem mais, um monólogo -, nasce na feira da ladra de Turim. Tarantino visitava com frequência uma vendedora de discos. Na banca ao lado um homem, Giovanni, que negociava com roupa, recebe um dia a visita de um miúdo que tenta vender-lhe um par de calças. As palavras do rapaz repetiam-se. Stabat Mater nasceu das palavras de um rapaz que repetia: "Mas eu, Giovanni, ficar aqui à tua espera, fiquei. Ficar aqui à tua espera fiquei, mas tu não vens..."
Em Stabat Mater este é o tom elíptico de Maria, uma prostituta que educa um filho sozinha e que, quando este desaparece, depois de problema políticos, anda a bater à porta de esquadras de polícia para tentar encontrá-lo. Mais asneira menos asneira, mais impropério, menos impropério, cumpre-se uma via sacra e desfia-se o rosário quebrado de toda uma existência.
À época Tarantino lia sobretudo poesia italiana contemporânea: "As palavras, quando são rebuscadas, belas, pouco comuns, são capazes de conseguir um sentido e de transformar qualquer um num poeta. Mas, para mim, essas palavras estavam gastas, longe da realidade. Eram como um gueto rico. Quando escrevi Stabat Mater, a alternativa foi ir buscar palavras usadas pelo homem comum que, inseridas numa estrutura literária, como a escrita teatral, tivessem uma certa força, por constituírem uma novidade, por nunca terem sido usadas ou ouvidas daquela maneira."
Paixão Segundo João, seguiria o mesmo tipo de lógica, construída a partir de 15 anos de visitas a um parente num hospital psiquiátrico de Brescia e da constatação de como o tempo ia secando a riqueza do vocabulário dos pacientes.
Seria uma terceira obra a romper com a regra. Até aqui, Tarantino tinha escrito sem compromissos, mas depois de Stabat Mater e Paixão Segundo João receberem o conhecido Prémio Riccione surge uma encomenda: completar uma tetralogia, Quatro Actos Profanos. "Começei a escrever parvoíces. Já não era capaz. Não sei o que é que aconteceu."
Foi necessário o encontro com o passado - um passado de diletantismo "punkabestia", como ele diz.
"Uma noite, por acaso, fui comprar cigarros à estação de comboios de Turim e encontrei uma pessoa que não via há talvez 30 anos. Não sei como é que o reconheci. Ele tinha barba e tinha sido operado à garganta - fumava e o fumo saía pelo buraco no meio do pescoço. Nessa noite foi jantar e dormir em minha casa, depois desapareceu, nunca mais o vi. A alcunha dele era Lantejoulas. Depois deste encontro escrevi a peça em pouco tempo. É qualquer coisa de mais livre, mas, sobretudo, fez-me perceber que não posso escrever sob encomenda. Eu preciso de esperar que aconteça."
Tarantino espera, e vai pilhando a sua própria existência. Porque é que, pelo meio, nunca voltou à pintura? Ele ri: "A cada um só determinada quantidade de eros. Além disso, para um artista, em certo sentido, é indiferente o meio usado para dar vida a qualquer coisa. No meu caso virei-me para a escrita de teatro."
A questão podia ter ficado por aqui, clara, quase transparente, não fosse, a dada altura, a confissão: "Sabe, eu tenho uma relação difícil com a escrita, principalmente com a escrita para teatro. Acho-a oprimente, pesada."
A pintura, diz ele, é diferente: "É mais gratificante, mais imediata, ligada a sensações físicas. Depois de se pintar durante bastantes anos, deixa de se ver o mundo como ele é, passa a ver-se cores, passamos a ver o mundo como queremos, que é o que passamos para a tela. A pintura dá mais liberdade, mais alegria, mais divertimento, é mais lúdica. Uma pessoa pode pintar todos os dias, mas eu nunca poderia escrever todos os dias."
Assim, em dois fôlegos, baralham-se todas as cartas acabadas de dispor sobre a mesa. Eis afinal um homem que se autoflagela. Porquê? "Precisava de cadeias, regras. Precisava de impor-me limites. Para mim foi útil. Quando sou completamente livre, tenho demasiado pontos de fuga, demasiadas direcções possíveis, tudo me parece interessante, belo, apaixonante. Acho que tive que agrilhoar-me para dar um sentido à minha vida e àquilo que fazia. Em mim, o excesso de liberdade não dá frutos."
bi
Nome Antonio Tarantino
Profissão Dramaturgo
Idade 68 anos
Apesar de dizer que a pintura é "mais gratificante, mais imediata, ligada a sensações físicas" e que "dá mais liberdade, mais alegria, mais divertimento", hoje Tarantino prefere escrever para teatro. Optou pela dramaturgia porque precisava de regras.

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