Danièle Huillet Morreu a outra metade de Straub

Danièle Huillet e Jean-Marie Straub eram "um cineasta com duas cabeças". Em 50 anos, realizaram juntos
mais de 20 filmes

Desde sempre, ou seja, desde 1954, quando se conheceram, que Danièle Huillet era metade de Jean-Marie Straub, assim como Straub era metade de Danièle Huillet, e juntos formavam um corpo inteiro: Jean-Marie Straub-Danièle Huillet, cineastas, ou, como alguém sugeriu, "um cineasta com duas cabeças". Huillet morreu na noite de segunda-feira em Paris, onde nasceu, a 1 de Maio de 1936.Havia quem, com feliz mistura de carinho e ironia, dissesse que Straub e Huillet não eram um casal, antes um par de gémeos siameses, unidos pelo umbigo ou pela cabeça ou por outra parte qualquer, em união inquebrável. Como inquebrável parecia esta conjunção de apelidos, Straub-Huillet. Aquilo que choca mais quando se sabe da morte de Danièle Huillet, que tinha 70 anos e morreu em consequência de um cancro, é que nunca se imaginou que essa conjunção se desfizesse, que o hífen caísse e levasse com ele um dos nomes, deixando o outro sozinho. Não se sabe o que Straub vai fazer a seguir, se vai continuar. Apostávamos que não, alegrava-nos que sim.
Neste instante, pouco importa: o fim de Straub-Huillet (porque é de um fim que se trata) é o mais significativo acontecimento cinematográfico até agora sucedido no século XXI. Tanto mais que Straub-Huillet estavam (estava) em plena actividade, com filme novo apresentado em Veneza em Setembro (Quei Loro Incontri), e ainda mais uma curta de 12 minutos, tanto quanto se julga saber concluída mas inédita, Europa 2005, 27 Ottobre, realizada por encomenda de Enrico Ghezzi como hipotética "sequela" para o Europa 51 de Roberto Rossellini.
Isto dito, e mesmo tendo consciência do "fim" que a morte de Danièle Huillet representa, alguma coisa nos repugna em fazer já o "enterro" do cinema de Straub-Huillet. Porque se eram "um", havendo como prova material disso uma vida e uma obra, falar de Straub e Huillet não significa falar de abstracções mas de dois seres humanos, de duas personalidades complementares mas distintas - e foi Danièle quem morreu.
Será exercício ingrato procurar distinguir dentro da obra onde está Straub e onde está Huillet (embora, ao nível dos métodos e do trabalho, haja questões "territoriais" interessantes, documentadas por testemunhos práticos). Fora dos filmes, na chamada "vida pública", nas entrevistas, por exemplo (sempre dadas pelos dois), os traços que identificam as duas personalidades permitem alguma clareza - e explicam até por que razão se diz mais vezes só "Straub", ou só "os Straubs", em vez de "Straub-Huillet".
A expansividade de Straub face ao maior recolhimento de Huillet explica alguma coisa. Straub é o showman, o espalha-brasas, às vezes incendiário, o que fala pelos cotovelos; Huillet (e isto pode ser comprovado por qualquer entrevista) é a que fala pouco, que se mantém na sombra, mas que corta a direito, muitas vezes para impor rigor ao próprio Straub - como numa entrevista dos anos 70 em que Straub se deixa levar pelas palavras e chama "fascista" a Fassbinder; Danièle reage e corrige: "Não se pode usar o termo "fascista" tão levianamente, chama-lhe antes "irresponsável."" (E Straub obedece.)
"O filme definiu-se quando descobri que eram Spencer Tracy e Katharine Hepburn", disse, mais palavra menos palavra, Pedro Costa, por altura da apresentação de Onde Jaz o Teu Sorriso?, o filme que fez sobre Straub-Huillet por encomenda do canal Arte (ver texto ao lado).
Há momentos do filme que têm um indisfarçável toque screwball, que não deixa de parecer uma maneira justa de descrever a "mecânica" do relacionamento entre Straub e Huillet, admiravelmente exposta em Onde Jaz o Teu Sorriso. Como se expõem às "questões territoriais": durante a montagem (processo que o filme de Costa acompanha), estávamos "no quarto da Danièle", a colaboração era absoluta mas nitidamente comandada por Huillet. Sentada à moviola, enquanto Straub andava para trás e para a frente em intermináveis monólogos ("cale-se, Jean-Marie!", a julgar pela amostra, a frase mais repetida entre o casal), era a sua "visão", a sua "contagem de fotogramas", a sua escolha do fotograma ideal para acabar ou começar um plano que, com mais ou menos discussão, acabava por prevalecer. Observação memorável de Straub, reconhecendo, a dado passo, a derrota na discussão sobre determinado plano: "Há um fotograma de diferença entre nós." Convenhamos que era muito pouco.

Fizeram 26 filmesConheceram-se em 1954, quando Straub, vindo da Lorena e depois de ter estudado em Estrasburgo e em Nancy, chegou a Paris já com o projecto de Crónica de Ana Madalena Bach (só concretizado perto de dez anos depois). Danièle Huillet queria então entrar para o IDHEC (a mais importante escola de cinema francesa), mas desistiu durante o exame: segundo conta Richard Roud (na primeira monografia sobre Straub-Huillet, editada em 1971), Danièle escreveu apenas três linhas manifestando a sua indignação pelo filme submetido a análise (Manèges, de Yves Allégret), e foi-se embora.
Estavam juntos há mais de 50 anos, e fizeram juntos 26 filmes. Straub e Huillet, por "motivo de doença", não foram a Veneza apresentar Quei Loro Incontri - receberam no festival um prémio de carreira. Agora talvez se perceba um pouco melhor a carta que Straub enviou ao festival, a história do "demasiado tarde para a nossa vida, demasiado cedo para a nossa morte", e o estilo arruaceiro da conversa sobre os terroristas: talvez fosse só um grito de dor.

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