Tudo sobre a mãe dela (e sobre a filha também)

Para aqueles que acham que todo e qualquer texto crítico se deve resumir a emitir uma opinião clara, concisa e cristalina sobre um filme, aqui vai ela: "Voltar" é um belíssimo filme menor de Pedro Almodóvar.

No entanto, é impossível ser claro, conciso e cristalino sobre um filme tão resolutamente maduro como "Voltar", objecto que, por trás da tranquilidade com que se vai desenhando, prova ser um dos títulos mais fervilhantes do realizador espanhol. Depois de "Má Educação" (2004) ter retomado a uma nova luz o lado transgressor da primeira fase da sua obra (o de "A Lei do Desejo" e "Matador", ambos 1986), "Voltar" encena um retorno de Almodóvar às subversões iconoclastas do melodrama clássico de faca e alguidar de "Que Fiz Eu para Merecer Isto?" (1984) ou "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos" (1988), e nem falta a presença da sua "musa" nesses anos 1980, Carmen Maura, para o sublinhar.

Mas "Voltar" é também uma história de fantasmas que perseguem os vivos, inserindo-se na linhagem das três obras-primas anteriores - "Tudo Sobre a Minha Mãe" (1999), "Fala com Ela" (2002) e "Má Educação", filmes sobre gente assombrada por passados que se recusam a morrer, sobre gente que confronta (e aprende a viver com) tabus. E é um regresso ao universo feminino de "Tudo Sobre a Minha Mãe", universo do qual os homens não só estão completamente ausentes como ao qual não fazem faltinha nenhuma (e se Almodóvar fosse o George Cukor dos nossos dias, o cineasta da mulher por excelência?...). No entanto, "Voltar" é precisamente, e numa contradição aparente, o filme do eterno retorno e o filme dos regressos impossíveis. Percebem agora porque é que é difícil ser claro, conciso e cristalino sobre este filme?

São mais que as mães (mas mãe há só uma).

Há duas irmãs, Raimunda e Soledad (na verdade são três, mas isso não vem ao caso), moças do campo (a ficcional Alcanfor de las Infantas situada na La Mancha natal que Almodóvar ergueu como raíz matricial dos seus filmes) que vivem em Madrid. Raimunda, mãe de uma adolescente, acumula trabalhos a dias e biscates para ganhar a vida enquanto o marido desempregado se enfrasca de cerveja frente ao futebol na televisão (mas não vai ser por muito mais tempo). Soledad, separada e sem filhos, é cabeleireira por fora. Há duas mães de La Mancha, Irene e Brigida (na verdade são três, mas já lá vamos): Irene, mãe de Raimunda e Soledad, morreu anos antes num incêndio nos braços do marido, Brigida, mãe da vizinha Agustina, era a hippie residente da aldeia e desapareceu sem deixar rasto (nunca sequer a veremos). E "Voltar" começa no cemitério de Alcanfor de las Infantas, onde todas as mulheres vivem muito e todos os homens morrem cedo, com as mulheres a cuidarem das campas dos defuntos ou, em alguns casos, dos seus próprios futuros talhões.

As mães fazem muita falta a estas filhas que outro remédio não têm senão improvisarem-se mães - Agustina torna-se numa "mãe" para a tia de Soledad e Raimunda, que ainda mora no casarão de família mas já não regula muito bem, Raimunda tem a sua própria filha para cuidar (e um instinto que quase se diria maternal), Soledad dá por si a fazer de mãe de... Irene, a mãe defunta falecida que lhe aparece qual assombração no dia do funeral da tia e se instala de armas e bagagens em sua casa. O súbito regresso dos mortos de Irene, a mãe fantasma, é uma reencarnação de um passado varrido para debaixo da alcatifa, no exacto momento em que Raimunda está à beira de fazer o mesmo ao seu presente (e futuro passado). A história dos fantasmas, claro, tem mais que se lhe diga - mas para isso convirá ver o filme, que não estamos aqui para revelar os segredos de uma narrativa em boneca russa onde tudo tem uma lógica própria.

O que fez ela para merecer isto.

É precisamente isso (embora não seja só isso) que aproxima "Voltar" do magnífico (e razoavelmente controverso) "Má Educação" - essa precisa construção narrativa que transfigura o passado em ficção, o modo como o passado é reavaliado e reapropriado com o correr do tempo. Só que onde aquele filme optava por um lado de filme negro auto-referencial quase Brian de Palma, este coloca-se do lado dos melodramas latinos feitos para maior glória de uma actriz (ou é por acaso que, a certa altura, Carmen Maura vê na televisão uma passagem da "Bellissima" de Visconti, com Anna Magnani?). Aqui, é Penélope Cruz, a quem Almodóvar dá o papel de uma vida, revelando finalmente o talento de uma actriz que deu o salto para Hollywood cedo demais e por lá se perdeu em objectos que exploravam a sua sensualidade exótica mas não lhe pediam que representasse.

No exacto oposto da imagem sofisticada que lhe conhecemos, Cruz literalmente desabrocha com uma criação magnética de mulher-mãe-coragem do povo que faz das tripas coração para manter o desespero à distância mas a quem a vida parece apostada em dar traulitadas por dá cá aquela palha. A surpresa, contudo, é mesmo ver Almodóvar assumir essa linhagem melodramática que sempre esteve presente e assumida no seu cinema de modo muito mais contido e reservado - menos garrido, menos extravagante, menos excêntrico, "Voltar" parece ter sido contaminado pela escuridão que emanava de "Má Educação", tal é o luto que pesa sobre as suas personagens (luto por um passado perdido, por alguém que se amou, pelas esperanças que foram ficando pelo caminho). Mas, depois percebemos, esse luto não é algo que pese ou que se transporte como um fardo, antes um luto pacífico, encarado como parte natural da vida, e que contribui para dar a "Voltar" o seu peculiar registo, invulgar no cinema de Almodóvar, de quase total ausência de conflito, de conversas que raramente elevam o tom de voz, de gente que se entende mas que, quando não se entende, não precisa de muito para resolver pragmaticamente a situação.

Não há, de facto, uma história, ou uma narrativa, em "Voltar"; Almodóvar elimina o fio condutor que ainda estava presente nos filmes anteriores para deixar apenas um retrato de um núcleo familiar inteiramente feminino que se reconstrói a partir do reencontro que lhe dá título, da necessidade de fazer as pazes com o passado e de regressar à essência, mesmo sabendo que esse regresso é por natureza impossível.

A maturidade maior.

Falávamos de contenção e reserva, talvez a palavra devesse ser "maturidade" - uma maturidade que muitos consideraram durante muito tempo ausente do seu cinema "naïf", mas que se começou a sentir a partir de "A Flor do Meu Segredo" (1995) e que encontrou o seu pico na maestria formal de "Má Educação", espécie de charneira a partir da qual o cinema de Almodóvar entrou numa nova fase. E, de facto, é essa maturidade que se sente a cada passo em "Voltar": uma maturidade que leva o realizador a arriscar filmar a sério aquilo que geralmente era anteriormente mostrado com uma forte carga de irrisão. O risco é que a ausência dessa irrisão minimize, ou mesmo menorize, o que Almodóvar quer contar - e grande parte da atracção do seu cinema esteve sempre no modo estilizado, "larger than life", com que tudo era contado, e é legítimo perguntar se, uma vez essa estilização ejectada, não se revelará um mero seguidor do lugar-comum.

É verdade que falta a "Voltar" a surpresa que aprendemos a amar no cinema de Almodóvar, a sensação de estarmos a ver um cineasta a descobrir novos territórios; aqui, o cineasta espanhol está a olhar de outra maneira os mesmos territórios que já conhece de trás para a frente, como quem regressa em adulto aos lugares que moldaram a sua infância - e há uma ironia muito grande neste olhar de maturidade não resistir a usar de vez em quando os óculos cor-de-rosa de uma nostalgia paredes-meias com o kitsch, mas de modo perfeitamente lúcido e consciente, nunca a enjeitando e até jogando, de modo assinalavelmente pós-moderno, com a auto-referência.

Mas quem se deixou deslumbrar pelas sucessivas ousadias dos filmes anteriores irá forçosamente esbarrar na inegável "banalidade" de "Voltar" e sentir uma certa decepção; é um objecto onde, ao querer sublinhar o conteúdo em detrimento da forma, Almodóvar apenas sublinha como, no seu cinema, ambos são indissociáveis, e como a sua maturidade formal é aqui usada pela primeira vez para sustentar sozinha um filme - como se o realizador estivesse já suficientemente confiante no seu talento de cineasta para deixar que seja ele a guiá-lo, mais do que um guião pontualmente esquemático e demasiado "escrito" . Como se Almodóvar quisesse ver até que ponto o seu cinema resoluta e inegavelmente "autoral" sobrevive à eliminação de algumas das suas marcas de autor - e, mesmo que o resultado não atinja o brilhantismo de filmes anteriores, é sempre reconfortante ver um realizador a correr riscos e tomar liberdades com a sua arte.

Ou seja, voltando ao princípio: sim, "Voltar" é um Almodóvar menor. Mas há muitos realizadores onde é nos filmes menores que se descobrem pistas para o seu universo. E "Voltar", na sua menoridade, é absolutamente fascinante.

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