Morreu Ali Farka Touré, o agricultor que criava blues no Mali

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Ali Farka Touré era guitarrista, autodidacta, de família nobre, presidente de câmara e músico genial DR

A data de nascimento de Ali Farka Touré pode não ser consensual, mas a data da sua morte é, desde ontem, certa: 7 de Março de 2006. Causa: cancro. O cantor e multi-instrumentista morreu durante o sono na sua casa de Bamaco, capital do Mali, onde a África do Islão se encontra com a África negra.

A notícia foi dada pelo ministro da Cultura, xeque Omar Sissouko, com as seguintes palavras: "Ele era para o Mali, a África e o Mundo inteiro um grande músico, que deixa uma fabulosa herança de música e sonoridades".

Touré deixa, desde logo, uma herança acima de todas as demais: uma via para os mundos africano e ocidental perceberem as ligações, parentescos e influências que entrelaçam desde há séculos a música tradicional norte-americana (em especial os blues) e os sons de cordofones da África ocidental. Não que Ali ficasse muito agradado com a ligação: "Aborrece-me quando as pessoas dizem que sou o homem dos blues, porque sei que o que faço faz parte da tradição desta cultura e é, acima de tudo, as raízes desta cultura".

Farka Touré nasceu em 1939 em Kanau, no Norte do Mali, nas margens do rio Níger. Provinha de uma família nobre de etnia Arma, mas tal não significava que fosse rico - após uma breve passagem pela escola, fez pequenos biscates e trabalhou no campo, a agricultura viria mesmo a tornar-se a sua maior paixão. A música foi também uma inclinação que surgiu cedo, mas só aos 30 anos este autodidacta conseguiu juntar dinheiro para comprar uma guitarra. O primeiro concerto internacional, fê-lo há menos de duas décadas - em 1987.

Em 1994, Talking Timbuktu, o encontro com o guitarrista norte-americano Ry Cooder (Paris-Texas, Buena Vista Social Club), lança-o para a ribalta internacional, recebendo um Grammy - receberia um segundo já este ano, para o último álbum, In The Heart of The Moon, gravado em conjunto com o especialista em kora Toumani Diabaté.

Mas Ali Farka Touré era mais do que um músico, era um líder. Eleito em 2004 presidente da Câmara de Niafunké, 850 quilómetros a norte da capital, era na realidade, nas palavras de Vasco Sacramento, director do festival de world music Sons em Trânsito, "o ganha-pão de toda aquela gente, que directa ou indirectamente dependia dele". O patriarca estava extremamente orgulhoso das suas terras e culturas agrícolas e, no que terá sido a maior vitória, do sistema de rega.

Era um homem difícil de definir face aos conceitos ocidentais, refere Raquel Bulha, animadora da Antena 3 da RDP e realizadora do programa de world music Planeta 3 (dom., 22-23h). "A música para ele vinha com a experiência, de horas a fio a treinar", mas não era um fanático da técnica: "Para ele, o importante era a espiritualidade no momento da gravação. Quando tocava com Toumani, por exemplo, nem precisavam de ensaiar".

Homenagem dos guitarristas

Recordando a entrevista de Ana Sousa Dias, no programa Por Outro Lado, na 2:, emitido em Outubro de 2005 mas gravado em Julho, aquando do concerto de Ali no Anfiteatro Keil do Amaral, em Lisboa, Raquel Bulha maravilha-se com uma pessoa tão diferente como ele que, por exemplo, "considerava os hipopótamos como deuses", e, mais seriamente, "encarava a música como um dom" - "ele não tinha orgulho de ser músico, porque isso era algo sobrenatural, um dom que lhe tinha sido oferecido".

Vasco Sacramento, que esteve em contacto com a organização de Touré ao longo da doença deste, relembra que o músico já estava muito doente quando esteve em Portugal (acompanhado pelo enfermeiro), e que de seguida esteve ainda em Paris para tentar um último tratamento de quimio/radiações, mas falhou. Em Setembro voltou para o Mali, dispensou a medicina ocidental e virou-se para os tratamentos tradicionais. Nos últimos meses, sempre que tinha momentos de lucidez e não sentia dores, fechava-se a tocar com o filho, como se se tratasse de uma transmissão de testemunho.

Ao longo deste tempo, sucederam-se as visitas (Dave Matthews, Ry Cooder) e os telefonemas - de Carlos Santana, Paco de Lucia, John McLaughlin. "Todos os grandes guitarristas do mundo lhe prestaram homenagens", termina o director do Sons em Trânsito.

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