Deleuze, uma estética da castidade

Colóquio em Lisboa juntou especialistas
no pensamento
do filósofo

Foi a última das conferências do colóquio Deleuze. A Arte Entre Crítica e Clínica, que decorreu, anteontem, no Instituto Franco Português, em Lisboa. Um dos comissário do evento, o francês François Zourabichvili (o outro foi Nuno Nabais), nome do qual se podem destacar duas importantes súmulas do pensamento de Gilles Deleuze - Deleuze Une Philosophie de L" Événement e Le Vocabulaire de Deleuze -, apresentou a sua primeira tentativa de abordar o pensamento estético do autor de Francis Bacon. Logique de la Sensation.Zourabichvili propôs uma conferência intitulada Kant avec Masoch, ao longo da qual viajou através de algumas noções e livros fundamentais para uma abordagem da estética deleuziana, nomeadamente o conceito de cristal de tempo (ou de inconsciente), desenvolvido por Deleuze em L"Image-Temps e no texto Ce que les Enfants Disent incluído na recolha de ensaios Critique et Clinique.
O cristal, quase uma condensação de toda a filosofia de Deleuze, daí a dificuldade do seu resumo, "é o estado último da problemática da experiência "real", e apresenta-se como um aprofundamento do conceito de devir" - daí a importância de outras noções como a de virtual, para uma aproximação a este termo. No seu Vocabulaire, Zourabichvili escreve: "Não é Moby Dick, o grande cachalote branco do romance de Melville, que interessa Achab: este apenas o persegue para se confrontar com a desmesura da sua própria vida, e é a verdadeira razão, a verdadeira lógica, a verdadeira necessidade do seu comportamento irracional."
Em Kant avec Masoch, o filósofo francês, doutorado com uma tese acerca de Espinosa, tomou como ponto de partida o livro dedicado por Deleuze ao escritor Sacher Masoch, no qual estabelece as diferenças entre sadismo e masoquismo, para sublinhar não só o ponto de ruptura de Deleuze com a fenomenologia, mas também para provocar um confronto com a estética kantiana - um percurso pautado por reenvios para textos e conceitos produzidos por "médicos da civilização", como Kafka e Foucault.
É assim o masoquismo, esse lugar onde se ligam arte, desejo e direito - a questão do contrato entre a dominadora e o escravo. Os livros de Masoch, como A Vénus das Peles, são atravessados de castidade, um espaço onde "o desejo funciona a todo o vapor", onde o interesse por algo ou alguém se mobiliza para num mesmo instante se suspender no próprio acto estético. E evocando as Cartas sobre a Educação Estética do Homem, de Schiller, Zourabichvili sublinhou o facto de a distância estética "não ter nada que ver com o amor por uma estátua". O filósofo alemão dizia, num comentário crítico a Goethe: "É impossível ser-se grego, nós tornamo-nos sentimentais." Talvez seja por essa razão que, desde o romantismo, a obra faz do seu espectador um brinquedo. Devir casto será assim, porventura, o elemento próprio do jogo estético, o seu ponto de fuga.
No colóquio foi ainda possível escutar outras importantes intervenções, destacando-se as de David Lapoujade sobre a ideia de perigo em Deleuze e a de Catarina Pombo - A Literatura Impossível: Bene, Melville e Beckett.

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