Senso, um jogo de duplos sentidos no D. Maria II

É um diário imoral, revelado na penumbra, de uma condessa italiana imaginada pelo escritor Camillo Boito. Senso é a última criação de Carlos Pimenta, Luciana Fina e Mónica Calle

Um grande ecrã, um grande plano de um rosto. Ouve-se: "Sentes? Nestes quartos, há sempre pequenos barulhos como este... O roçar de uma cortina, ou um bicho da madeira, uma mosca que bate contra os vidros. Já tinhas notado isso? Nota-se só depois, ao recordar. Só depois os detalhes se tornam importantes". As confissões são da condessa Lívia Serpieri, que em cena nos abre o seu diário íntimo e ousa desvendar prazeres e desejos até então nunca revelados.Senso, que se estreou ontem no Teatro Nacional de D. Maria II, em Lisboa, é uma co-criação de Carlos Pimenta, Luciana Fina e Mónica Calle. A peça foi criada a partir da novela Senso, dallo scartafaccio segreto della Contessa Lívia (1883), que tem a assinatura do escritor e arquitecto italiano Camillo Boito. A adaptação "operática" da novela para cinema por Luchino Visconti em 1954 foi outra das fontes de inspiração do espectáculo, que se integra na programação do festival Temps D"Image.
"Não nos interessava recriar a história de Senso. Queríamos antes explorar a percepção sensitiva, as memórias que o livro ou o filme são capazes de evocar", explica Carlos Pimenta. Está-se, portanto, no universo das sugestões. Aqui, são convocadas diferentes linguagens - por exemplo, o retrato fílmico coexiste com o espaço cénico - e joga-se aos duplos sentidos. "O que se mostra em excesso no ecrã, surge em palco sempre na penumbra", diz Luciana Fina, que se tem dedicado sobretudo a trabalhos na área da imagem. "Usámos o visível e o invisível como forma de desenvolver diferentes planos de percepção, memória e significado."

Uma mulher invulgarInquieta e provocadora, a condessa Lívia Serpieri (interpretada por Mónica Calle) relata no seu diário a relação adúltera com um oficial austríaco na época em que a Itália estava sob o domínio da Áustria. A descrição nunca cede a considerações morais. Carlos Pimenta justifica: "Trata-se de uma mulher invulgar, que enfrenta os preconceitos da sociedade burguesa italiana, mas não se vitimiza". Aliás, em Senso, a condessa assume mesmo a sua vingança: depois de traída pelo jovem oficial, é ela quem denuncia o amante desertor ao comando austríaco, condenando-o à morte. "Não tínhamos como objectivo desenvolver o carácter desta personagem", diz Mónica Calle. "O fundamental era realçar a sua capacidade de sentir e de provocar sensações."
Os segredos do diário da condessa Lívia Serpieri são, por isso, quase sempre revelados de modo fragmentado e na escuridão. "É quando os sentidos estão mais despertos e se consegue reparar em coisas que, de outra maneira, nunca se descobririam", diz Luciana Fina. "É através da voz que configurámos o espaço cénico; é ela que permite alargar ou apertar a cena", acrescenta a actriz. Depois, há ainda os ruídos, que funcionam como uma espécie de "tapete sonoro" e foram retirados do filme de Visconti para "estabelecer relações com a memória de quem viu o filme".
Num ambiente intimista, por vezes imoral, os detalhes tornam-se assim determinantes. "Filmar o rosto da Mónica a partir do seu reflexo num espelho, que só é revelado no final, permitiu fazer com que a frontalidade aqui nascesse do artifício", nota Luciana Fina. Mas, afinal, por que se gosta tanto de olhar, por que não se resiste a um espelho? Talvez, como diz a condessa Lívia em Senso, para "ter a certeza" de quem se é, ou então, para "mortificar a vaidade".

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