O paradoxo português

Apesar da desigualdade, Portugal é um dos raros países em que são mulheres os artistas mais conhecidos internacionalmente

Paradoxal: a comissária independente Isabel Carlos classifica assim a realidade artística portuguesa. Curadora da representação nacional na Bienal de Veneza deste ano, Isabel Carlos foi vice-directora do Instituto de Arte Contemporânea e responsável pelas aquisições do instituto para a primeira colecção pública de arte contemporânea nacional. Diz ter tido "a preocupação de manter um equilíbrio entre homens e mulheres" nos anos em que assumiu o cargo. Mas diz também que este "é um tema incómodo em Portugal"."Trinta anos depois do 25 de Abril, pode-se falar em desigualdade. Se pensarmos nos grandes nomes da arte nacional do século XX, os mais internacionalmente conhecidos são mulheres - Vieira da Silva e Paula Rego - mas, normalmente, há muitas mulheres na base da pirâmide e o topo continua a ser ocupado por homens. Lembro-me de ver uma exposição em Serralves, nos anos 80, em que não havia uma única mulher. Seria impensável em Londres ou Nova Iorque."
Mas Isabel Carlos está de acordo com vários outros agentes do meio quando aponta uma mudança progressiva. "No universo internacional essa correcção tem vindo a acontecer desde os anos 70. Devido a todo um sistema social mais vasto, em Portugal é cedo para que se sinta nas colecções", diz o director do Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém, Delfim Sardo.
Com uma programação estritamente ligada a "critérios de qualidade intrínseca" e "sem contas de quotas", Sardo diz, contudo, não ter dúvidas quanto a "um machismo claro na história da arte, nomeadamente na do século XX" - um sistema baseado em figuras tutelares masculinas, não só ao nível do ensino, da crítica e direcção de museus e colecções, mas mesmo ao nível do que se entende ser um artista, conceito frequentemente ligado à ideia de "bravata masculina".
Artista e historiadora de arte conhecida pelo acompanhamento teórico que tem feito da obra de Paula Rego, Ruth Rosengarten diz que parte do problema radica na forma como as próprias mulheres encaram o seu papel social, frequentemente tímidas no enfrentar de realidades como a ambição: "Acho que acaba também por ser um papel auto-definido. Há uma culpa nas mulheres de enfrentar a ambição de uma forma tão visceral como os homens."

"Há muito mais raparigas a abandonar a carreira artística"
A dividir o ano entre Londres e Lisboa, Rosengarten acha que, "o feminismo não teve grande impacto nas artes em Portugal". "O grande problema surge entre a escola e a profissionalização. Há formas de reprodução de estatuto social que estão muito interiorizadas: tem a ver com a maneira como as mulheres se encaixam nas estruturas e com a relação que estabelecem com a hierarquia de carreira, com o que se faz para chegar ao topo ou com o que cada artista acha possível para si próprio."
É também a opinião de Alexandre Melo. Sociólogo, crítico e comissário, o actual consultor para a Cultura de José Sócrates diz que "há muito mais raparigas que rapazes a abandonar a carreira artística imediatamente após a saída das escolas". "Portugal é um país que tem um défice muito grande em termos de igualdade de direitos; será, portanto, compreensível o número relativamente baixo [de mulheres nas colecções]", diz.
As grandes mudanças deverão começar a fazer-se sentir com as gerações posteriores às nascidas na década de 70, dizem os especialistas - algumas sentem-se já ao analisar o número de mulheres a entrar para as colecções por década.

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