O Fatalista E assim João Botelho anuncia Diderot

No seu novo filme,
o realizador
adapta Diderot, "visto por Brecht"

Porquê Diderot (1713-1784), porquê esse trabalho de "luta" que foi o confronto com um texto clássico, Jacques le Fataliste, que agora é o filme O Fatalista? Porque - respondeu ontem o realizador João Botelho, na conferência de imprensa que se seguiu à projecção em competição do seu filme - "Diderot é um escritor imenso, de obras muito radicais e anunciadoras do que ia acontecer no mundo. Jacques le Fataliste anunciou a Revolução Francesa, de que nós aproveitamos ainda algumas coisas, está lá já a ideia de que os homens nascem livres e iguais". E o realizador quis então "anunciar" algo com esta adaptação, anunciar que o mundo ainda avança com a luta de classes. "Porque hoje corremos o risco de pensar que a luta de classes acabou. Fala-se em fundamentalismos religiosos, isso é uma treta... O mundo avança com a luta entre quem tem e os despossuídos".João Botelho anuncia, então, Denis Diderot desta forma: pondo o herói, aqui chamado Tiago (Rogério Samora), como um motorista e a formar com o patrão (André Gomes), numa variação de outras mil narrativas e histórias, uma espécie de dupla Don Quixote e Sancho Pança, como ele exemplificou; fazendo-os atravessar Portugal numa viagem de aprendizagem, iniciação às regras dos sentimentos, do poder e do saber - o patrão tem tudo, mas não sabe nada; o motorista não tem nada, mas tem o saber.
"Hoje [com esta versão] posso anunciar", rematou Botelho, "que quem não tem nada pode saber. E que o saber é poder".
E assim João Botelho anuncia Diderot. Nas suas próprias palavras, um Diderot "visto por Brecht". Traduzindo a posição do cineasta, do seu cinema: "Dou-vos um bombom, mas digo: "Isto é um bombom". Trato o espectador não como espectador de obras organizadas, mas como pessoas com coração, sim, mas também com cérebro" (citando-o, que também cita, "a felicidade dá trabalho").
Traduzindo: João Botelho encara cada plano como a sua própria desconstrução, ou como a desconstrução de uma ideia, que para ele é primária, de espectáculo. Coerência não falta, o puritanismo é coriáceo (podem levantar-se suspeitas de algum paternalismo, de qualquer forma...), mas mesmo sem essa emoção dita primária das histórias e da "papinha feita ao espectador" (e mesmo correndo o risco do paternalismo...) o cinema de Botelho já foi triste e já foi austero, já criou tensão, já foi emocionante. Ora, há algum tempo (talvez desde 1998, desde Tráfico) que se vê sobretudo dispositivo, o lugar de onde se anuncia... V. C., em Veneza

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