O beijo de Doisneau vendido por 155 mil euros

Um dos ícones da fotografia do século XX atingiu
um valor recorde. Foi a mulher que se deixou beijar junto a uma esplanada
de Paris que a vendeu

Há 55 anos, Françoise Bornet foi beijada por Jacques Carteaud, o namorado, numa rua movimentada de Paris. Sentado a uma das mesas da esplanada do Hôtel de Ville, Robert Doisneau registou o momento, criando um dos maiores ícones da fotografia do século XX. Uma das primeiras cópias da fotografia a que Doisneau deu o título de Baiser de l"Hôtel de Ville foi leiloada anteontem em Paris, atingindo um valor absolutamente recorde - 155 mil euros (a fotografia mais cara de Doisneau vendida até aqui custara 14 mil euros).
A proprietária, a própria Bornet, hoje com 75 anos e que pôs a fotografia à venda para fundar com o marido uma produtora de documentários, não queria acreditar. Em menos de três minutos, o exemplar que Doisneau lhe enviara dias depois daquele que é, provavelmente, o beijo que mais contribui para o mito da Paris romântica, atingiria um valor dez vezes superior à sua base de licitação.
"É extraordinário", disse ao diário francês Le Monde. "Estou muito sensibilizada. Esta venda marca um novo começo", acrescentou, garantindo que vai comprar uma reprodução da fotografia - para não esquecer o momento.
Até ao início dos anos 90, os milhares de pessoas que admiravam a fotografia de Doisneau (1912-1994) acreditavam tratar-se de uma imagem captada por acaso numa rua de Paris por um profissional atento. Doisneau estava, de facto, atento - o suficiente para reparar num jovem casal numa mesa de café e para lhe propor que posasse para ele, num beijo apaixonado que parece deixá-los suspensos, perante a indiferença de quem passa.
Françoise e Jacques eram na altura estudantes de teatro. Doisneau recebera uma encomenda da revista norte-americana Life para fotografar casais de namorados nas ruas de Paris.
Bornet guardou o segredo do fotógrafo francês, mesmo quando outras pessoas reclamaram a identidade dos protagonistas da fotografia. E não eram poucos, já que em 1986 a fotografia começou a ser reproduzida em grande escala em postais e posters, vendendo mais de 400 mil exemplares até 1992, segundo o diário espanhol ABC. Mas Doisneau viu-se obrigado a admitir que se tratava, de facto, de uma encenação - uma espontaneidade cuidadosamente planeada.
"Jamais ousaria fotografar pessoas assim. Os enamorados que se beijam na rua raramente formam casais legítimos", disse o fotógrafo, que morreu em 1994.
Ao contrário de Bornet, Carteaud não guardou a cópia que o fotógrafo lhe enviou. O romance entre os dois foi breve - esse, sim, um verdadeiro instantâneo -, mas a fotografia de Doisneau eternizou-se. E, de alguma forma, eternizou a Paris dos amantes e dos cafés da década de 50.
"Esta fotografia pertence ao século", disse ao Le Monde um dos responsáveis pelo leilão, Hervé Poulain. "A presença da mulher enamorada do Hôtel de Ville durante a venda contribuiu para a alquimia e a magia à volta dos objectos que estabelecem recordes", acrescentou, sublinhando a importância da criação de um mercado para a fotografia artística, que, diz, não existe há 15 anos.
O comprador desta cópia assinada de Baiser de l"Hôtel de Ville foi um coleccionador suíço que preferiu não revelar a identidade. Talvez um dos muitos que acreditaram durante anos que Doisneau surpreendera Jacques e Françoise no momento em que ele lhe roubou um beijo.

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