Torne-se perito

A lenta agonia do montado

Há anos que os sobreiros e azinheiras morrem, aparentemente, sem explicação. Mas o caso está a agravar-se e a pôr em causa a sobrevivência de um mundo rural já de si afundado em problemas. O PÚBLICO visitou algumas das áreas mais afectadas, onde as clareiras deixadas pelas árvores que desapareceram se espalham como uma praga . Por Ana Fernandes

Com sete décadas a cuidar do montado, Virgílio António Félix não se conforma. "Ver aparecer o branco nas árvores enche-me de tristeza", conta. O primeiro sinal de que um sobreiro ou uma azinheira estão a morrer é dado pelos ramos que, à falta de folhas que o cubram, começam a surgir esbranquiçados pelos líquenes. Uma cor cada vez mais espalhada pelo Sul do país. Como uma bandeira, assinala a progressão da praga e a tragédia: o montado está agonizante.O problema não é novo nem exclusivo do país. Por toda a Europa se assiste a um declínio das quercíneas (do género Quercus, a que pertencem os carvalhos, os sobreiros ou as azinheiras), sem que haja grande consenso sobre as suas causas (ver texto nestas páginas). No relatório sobre o Estado das Florestas, editado anualmente pela Comissão Europeia e pela Comissão Económica para a Europa das Nações Unidas, constata-se uma importante desfoliação (perda de folhas) destas espécies.
Em Portugal, o problema acentuou-se nas últimas duas décadas. Nem é preciso sair da auto-estrada do Sul para verificar o estrago. Ao longo de centenas de quilómetros, sobreiros secos, doentes ou mortos surgem constantemente. Por todo o Alentejo, o cenário repete-se. E só não é mais tétrico porque os agricultores pedem autorização à Direcção-Geral de Recursos Florestais para remover o "cadáver". Resta o espaço vazio, que se multiplica como uma chaga. Zonas outrora totalmente ensombradas, estão agora carecas, reduzidas a escassos exemplares, cada vez mais distantes uns dos outros.

Doença ataca serra do Caldeirão Mas pouco se compara à tristeza que impera na serra do Caldeirão, já no Algarve. À primeira vista, tudo parece destruído pelos incêndios de 2004. Em muitos casos, é verdade. Mas entre o que se salvou das chamas penam centenas de árvores em fogo lento, com os ramos retorcidos, despidas das folhas, à beira da morte.
Em várias dessas árvores, umas estranhas "bananas" arrebitam-se no seu tronco. Nelas estão condensadas as esperanças de muitos subericultores. E também uma parte importante das suas poupanças. As injecções de fósforo e potássio são vendidas como um tratamento inovador contra a fitóftora, um fungo que ataca estas espécies e as condena por inanição. Uma solução pouco consensual. Segundo Cunha Gonçalves, da Suberévora - Associação dos Produtores Florestais de Évora, estes produtos não passam de paliativos e têm "um custo impraticável": o tratamento de um hectare de montado ronda os 600 euros.
Este estranho quadro, composto por "bananas" a saírem de troncos de sobreiro, repete-se em centenas de propriedades. Mas, até agora, os resultados não são visíveis. Só que à falta de outra solução, e perante a agonia das árvores que lhes dão muito do seu sustento, os agricultores agarram-se a todas as hipóteses de tratamento para inverter a situação.
Outros vão testando alternativas. Nos 56 mil hectares incluídos na Associação dos Produtores Florestais do Caldeirão, a doença está espalhada por todo o lado. "Diria que está quase tudo afectado", refere José Pedro Albuquerque.
Para tentar ver o que melhor resulta, nuns locais tenta-se a tal "banana", de seu nome oficial "LLT injectável". Noutros plantam tremocilha para enriquecer o solo. Fazem-se ainda pulverizações com fosfito de potássio. Mas a situação continua a não ser animadora.
"Há cinco anos, um proprietário fez um projecto de beneficiação nos seus terrenos, mas desde aí já lhe morreram metade das árvores", conta José Pedro Albuquerque.
"Alguns de nós seguem os conselhos dados pelo Ministério da Agricultura, usamos grades mais leves para não estragar as raízes, obedecemos aos limites do encabeçamento [número de animais por hectare], mas as árvores continuam a morrer", assegura Virgílio Félix. "Até as novas plantações aparecem com doença, assim como o montado que não é cultivado", adianta ainda.

Atirar dinheiro à ruaEm Ourique, no Cercal, em Grândola, em Mértola, na serra de Serpa ou em Almodôvar sucedem-se quilómetros de árvores secas. Brito Ramos, um dos proprietários em Ourique, revolta-se com a inacção das autoridades. À falta de tratamento, defende, "que se faça uma carta de risco sobre as zonas infectadas pela fitóftora para que não se ande a jogar dinheiro à rua, subsidiando plantações que acabam por morrer".
Também ele vê secar árvores jovens, agarradas a uma terra onde as suas antecessoras vergaram enfraquecidas por um sem-número de causas, feridas de morte por um minúsculo ser, um fungo até agora imbatível. "Há 15 anos arranquei 700 hectares e plantei de novo pensando que erradicava a doença, mas voltou tudo, estão contaminadas", acrescenta Brito Ramos.
José Cândido Félix Nobre, presidente da Associação de Criadores de Porco Alentejano, depende das azinheiras e do seu precioso fruto para alimentar uma indústria em expansão. E assiste, impotente, a uma crescente razia nos seus terrenos: "Está-se a assistir a uma enorme mortalidade, o problema está em grande evolução, pois havia herdades repletas de árvores e que agora estão completamente carecas". Com contactos em todo o Baixo Alentejo, Cândido Nobre está convencido que o problema tem vindo a piorar: "As árvores que morreram nos últimos dez anos são o dobro das que morreram nos 20 anos antecedentes, isto está em aceleração."
Responsável por um sector que está a garantir rendimentos a um mundo rural despovoado, o presidente da Associação de Criadores de Porco Alentejano começa a preocupar-se: "A actividade não está em risco no curto prazo, mas no médio e longo está." "Havia herdades repletas de árvores, agora têm clareiras arborizadas", descreve.
Este dirigente associativo continua optimista: "Neste momento ainda há hipótese de se fazer muita coisa." Contudo, esse optimismo não tem sido partilhado pelos governantes. "Tenho falado com todos os ministros, que me respondem que os estudos não são conclusivos, que não há forma de agir, mas acabam sempre por prometer mais estudos."
Só que o tempo está a correr contra os agricultores, sobretudo os que dependem da azinheira, "que morre mais depressa que o sobreiro", garante Cândido Nobre.
"Isto está a acontecer na região mais pobre do país, nós não temos voz, portanto não é dada prioridade política ao problema", queixam-se os agricultores. Todos temem o final do Verão, sobretudo num ano de seca. É nessa altura que morrem mais árvores, muitas de morte súbita, isto é, de um momento para o outro.
Enquanto nada é feito, Virgílio Félix vai entristecendo à medida que mostra uma árvore, outra e mais outra que nos seus terrenos acusam já os sinais da doença: "Vemos isto com tanta amizade, mas está tudo a perder-se." Brito Ramos recusa-se a cruzar os braços: "Não podemos deixar morrer a floresta mediterrânica impávidos e serenos sem pelo menos lutar."

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