Depardieu, o fantasma apaixonado

Ele é quem primeiro vemos, Antoine (Gérard Depardieu), a chegar a Tânger, Marrocos. Há uma rigidez nele... como acontece àqueles que, por encantamento, ficaram transformados em estátuas.

Depois vêmo-la a ela (e ele vê-a), Cécile (Catherine Deneuve), agitada, sempre em acção - é uma mulher que não gosta da forma como o seu corpo se modificou, o seu sentido de realidade dá-lhe capacidade de lidar com isso, mas é uma evidência: as linhas do rosto já não acompanham o desejo de movimento que existe nela.

À volta de Cécile e Antoine há uma série de personagens em dúvida sobre que caminho tomar, mas sempre em trânsito e sempre ofegantes, naquela afectação ruidosa que se tornou típica das personagens dos filmes de Téchiné.

Mas eles, Antoine e Cécile, é que interessam.

Há trinta anos amaram-se, separaram-se e não se voltaram a ver. Cécile esqueceu-o, casou em Marrocos com um médico, mais novo do que ela (Gilbert Melki), o casal tem um filho, Samy, que vive em Paris e que chega também a Tânger para visitar os pais e que...(multipliquem-se as linhas de fuga, irresolúveis, suspensas e contentes de assim o serem...).


Eles é que interessam. Antoine chega a Tânger para a reconquistar, passou a vida a pensar nela. Ela não, e Cécile não é mulher para crer em fantasmas. Mas... "Os Tempos que Mudam" é o filme em que Depardieu traz Deneuve de regresso ao mundo assombrado do amor, e do passado, enquanto a "vida" corre lá fora, ruidosa; é o filme em que a imobilidade vence, é o filme de resgate de qualquer coisa que estava nas profundezas das personagens, numa verdade que é delas. Nesse sentido, a dimensão gótica, ou funesta, dos primeiros filmes de Téchiné volta a ser, através da personagem Depardieu, uma corrente interior decisiva em "Os Tempos que Mudam". E o filme desenha semelhante movimento de resgate na obra do realizador: um regresso a algo de essencial e de irredutível que foi desbaratado, tornado banal, depois do apogeu chamado "Juncos Silvestres" - o percurso tem sido francamente descendente, com "Os Ladrões" (1996), "Alice e Martin" (1998), "Longe" (2000) e "Os Fugitivos" (2003).

Como Téchiné procede a esse resgate é cativante. Deneuve/Depardieu, que se encontraram há 25 anos em "O Último Metro", de Truffaut, e depois em "Je Vous Aime" (80), "La Choix des Armes" (81), "Fort Saganne" (84) ou "Drôle d'endroit pour une rencontre", de François Dupeyron (88), são um património dos nossos fantasmas. Téchiné filma-os como uma história antiga, como se filmasse um processo de cristalização, como se eles tivessem sido sempre assim: o frágil e feminino Depardieu, o homem de saias que é Deneuve. Mas ao contrário do que se podia esperar, não há nada aqui de barroco ou gongórico. O tom insinuante para este encontro é o burlesco, quase no sentido de dupla de "clowns": o desamparo desastrado de Depardieu, o incómodo e a crispação de Deneuve. Há ainda demasiado barulho para nada à volta desta relação madura, a atracção de Téchiné por uma certa ideia de sensualidade, pelo norte de África, ainda se espraia em figurações, movimentos e afectações inconsequentes. Mas com o silêncio do plano final pode começar a falar-se da recuperação de um cineasta.

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