Romântico, anti-moderno

Sabe-se que tive sempre uma grande admiração por Manuel Vázquez Montalbán e pelos seus livros da "série Carvalho", ou seja, pelos livros em que o personagem central é o detective privado Pepe Carvalho. A reabilitação do "género policial" entre nós deve-se muito a esses livros.Não é vulgar encontrar um galego céptico como este, que ama Barcelona, gastrónomo, ex-militante do Partido Comunista, ex-agente da CIA, solitário, exigente leitor dos próprios livros que vai queimando metodicamente na lareira da sua casa de Vallvidrera - encontrá-lo é, também, descobrir, através das histórias em que ele "entra" (à maneira de um actor que "entra" nos filmes), e em que entra também uma relativamente vasta galeria de personagens cujos nomes se tornam referências para os seus leitores mais dedicados - como Charo, Biscuter, Bromuro, Fuster ou Teresa Marsé - um universo de referências centrais da cultura espanhola contemporânea. Encontrá-lo é garantir, para nossa felicidade, que a chamada arte do romance não morreu e que, por detrás desse quase puro divertimento que é a "série Carvalho", há intuições importantes sobre a natureza da literatura de ficção, sobre o destino da história e dos homens e mulheres banais. Mais do que isso, sobre o destino do homem comprometido com a história.São - em geral - crónicas de uma Espanha em transição, histórias de uma Espanha em que a divisão social do trabalho permite a existência de detectives privados, de escritores laureados (tão achincalhados em "O Prémio"), de empresários que se enganam nos verbos do seu inglês de "business", de futebolistas de coração despedaçado (como em "El Delantero Centro..."), de mulheres fantásticas (sempre que aparece Teresa Marsé, sempre que Charo fala ou dobra uma página). E são, todas elas, histórias de uma procura, de uma demanda, de uma busca, de uma perdição. A de "Tatuaje", a de "Mares do Sul", a de "O Labirinto Grego", a de "La Soledad del Manager" ou a de qualquer um dos livros em que Pepe Carvalho persegue um silêncio - o silêncio dos passos ausentes de qualquer personagem que sintetize, ou condense, ou amplifique a natureza de uma inquietação sobre a Espanha moderna. Não é de estranhar, por isso, que Montalbán (mesmo no caso dos personagens mais detestáveis, como Fonseca, ou Voltaire O'Shea - o polícia franquista que contracena com Pepe Carvalho, e o investigador de "Galíndez") deixe perceber por esse mundo uma imensa ternura que, ora se mostra compreensiva, ora vagueia para revelar um olhar irónico ou cínico (como na "Autobiografia do General Franco"). Em "El Hermano Pequeño", ao aflorar o problema da traição - ideológica, por exemplo, mas também física -, Pepe Carvalho retoma o método que usou em "Asessinato en el Comité Central" e em "Asesinato en Prado del Rey": compreender para além do possível, não fechar portas em nome de nenhuma certeza. Os escritores "comprometidos" não aprenderam nada com ele.Nesse gesto repetido até à exaustão, o de Pepe Carvalho queimar livros (o leitor pergunta-se, ao abrir cada um deles: "Que livros vai ele queimar nesta história?") fica encerrada a maior das ironias - a de um detective que representa o mundo absoluto da cultura numa época de esquecimento. A memória é a ocupação mais transitiva de Pepe Carvalho: ele não é apenas aquele que procura a solução dos mistérios - é aquele que lembra, aquele que tem memória: memória dos nomes da Espanha, memória de um sabor vadio (uma comida, um corpo, uma casa abandonada), memória da história dos homens, memória da sua cidade, memória dos seus amores, memória das canções que vai citando em epígrafe ou perdendo em capítulos derradeiros. Por isso ele queima os livros - para os recordar e nada restar da sua imitação, como se o mundo da cultura estivesse cheio de falsificações.Em "Galíndez" (um dos seus livros sem Pepe Carvalho, como "Los Alegres Muchachos de Atzavara", por exemplo), um desses personagens da "moderna Espanha" e da "moderna Europa", diz que se sente bem "sem memória ou com muito pouca memória histórica". Ricardo, o rapaz que se apaixona por Muriel (a mulher que investiga o processo e a morte não esclarecida de Jesús de Galíndez Suárez, o chefe do governo basco no exílio), di-lo no fim do livro: "Sem pessoas como Muriel continuaríamos a ser uns miseráveis." Por isso, os seus livros são também escritos contra essa miséria da vida toda, que é a falta de memória. São anti-modernos, ironicamente. Este tom "anti-moderno" é um dos mais fascinantes da sua obra e vem de um fio que deve ser buscado em "Crónica Sentimental de la Transición", por exemplo. Irritam-no a leviandade, a ignorância, a sordidez, "a sordidez agarrada a diferentes níveis culturais e sociais", atravessando classes e circunstâncias, profissões e biografias. Nesse mundo sórdido, Pepe Carvalho foi um dos últimos românticos, buscando num tango, num bolero, numa canção de Raimón, na lembrança de uma estrada (um dos mais belos trechos de "Os Pássaros de Banguecoque"), na peregrinação por uma rua, os sinais de uma imensa humanidade traída. Esse é o mundo magnífico de Montalbán.

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