Amnistia e pedofilia: meus senhores, assumam-se!

1. Primeiro, aquilo que é.A Constituição permite duas formas de intromissão excepcional do sistema político no funcionamento concreto do sistema judiciário: uma, são as leis de amnistia e de perdão de pena, outra, é o indulto presidencial.No primeiro caso, trata-se de uma intervenção supostamente abstracta; no segundo concreta. Por definição, as leis parlamentares de amnistia prevêem categorias genéricas de infracções abstractas a quem concedem a graça do esquecimento público, ou tipos abstractos de penas a quem outorgam o benefício de um encurtamento da sua duração; o indulto presidencial é um acto concreto de agraciamento de um específico delinquente, reduzindo-lhe o tempo de restituição à liberdade.2. Depois, aquilo que devia ser.Ambos os institutos, as leis de amnistia e o indulto são actos políticos; ora actos políticos que são, deveriam ser actos de responsabilidade, guiados por critérios que se entendessem e se justificassem, que resistissem a uma discussão pública, não envergonhassem quem os assumiu e sobretudo não pudessem, pela sua lisura e transparência, ser usados como armas de arremesso na luta livre a arrancar olhos em que a vida político partidária hoje se degradou.3. Agora o que acontece.Ora o que ressalta da gritaria enraivecida que por aí grassa por causa da Lei de perdão de penas e de amnistia de 1999, e do que ela possa ter a ver com o «caso da Casa Pia» é que ninguém quer assumir a paternidade de tal lei e alguns querem fazer-nos crer que as suas previsões, a não terem sido, neste particular, obra de um descuido legislativo, foram, seguramente, o efeito de uma imprevisão sobre o valor acrescentado que, quatro anos depois, viriam a ter as crianças em Portugal.Ninguém quer da lei discutir-lhe a autoria. O Presidente da República decretou, com "veemência não irritada", ponto final na questão, como se em democracia pudesse haver tal ponto numa tal questão com esta gravidade e com este melindre.Todos querem absolver na TV o legislador da amnistia.Para uns, ele esqueceu-se em 1999 de que havia afinal, desde 1995, estes novos crimes para proteger a "autodeterminação sexual" das crianças e, por isso concedeu sem querer o manto protector do perdão de pena aos que as tivessem atacado entre 1995 e 25 de Março de 1999.Para outros, em 1999 ninguém pensaria que os ataques sexuais às crianças viessem a ter em 2003 - o ano em que estamos - a reprovação a que assistimos.4. A seguir a verdade.Claro que é tudo mentira naqueles argumentos dos que querem justificar o injustificável.Em primeiro lugar, quem fez a lei de amnistia e se deu ao cuidado de nela prever que não gozavam dos benefícios do perdão da pena os crimes sexuais previstos nos artigos 163º, 164º, 165º, 166º e 167º do Código Penal, obviamente que percebeu que, logo a seguir, no mesmo Código, vinham os artigos 169º (tráfico de pessoas), 170º (lenocínio de maiores), 171º (exibicionismo), 172º (abuso sexual de menores), 173º (abuso sexual de adolescentes e dependentes), 175º (estupro), 176º (lenocínio de menores), e que, ao não os prever na lei, estava obviamente a dar aos seus autores o benefício do perdão de pena.Além disso, é mais do que evidente que os ataques sexuais a crianças sempre revoltaram o sentimento ético da comunidade e do legislador tanto que quatro anos antes, em 1995, o ministro da Justiça de então, o Dr. Laborinho Lúcio introduzira no Código Penal crimes novos para proteger melhor as crianças de ataques sexuais e reprimir os seus autores, pelo que o autor da lei de amnistia de 1999, se agraciou deliberadamente os autores de tais crimes, não o fez em relação a coisas menos repugnantes então do que o são hoje.5. Agora, o que todos fingem não estar a ver.Primeiro, nunca a Assembleia da República se sentiu obrigada a ter de explicar ao sistema judiciário ou ao povo em geral porque amnistiava o quê, ou porque encurtava certas penas e em que medida; nunca o Presidente da República sentiu que devia aos reclusos não indultados, ou ao país que recebia de volta os agraciados, o porquê justificativo daqueles actos de clemência e de perdão: ambos os órgãos de soberania se comportaram neste aspecto com o máximo de arrogância, como se a Democracia nada lhes exigisse a tal respeito.Segundo, ambos, a Assembleia da República e o Presidente da República sabem que os actos de amnistia, de perdão de penas e de indulto pressupõem graves escolhas sobre tipos de crimes, medidas de penas, delinquentes concretos, momentos históricos, sensibilidades sociais e das vítimas, consensos políticos e sabem também quanta discussão, quanta dúvida, quanta especulação, pode haver sobre tais escolhas, seus critérios, suas razões, suas motivações, sobre os interesses em jogo e os seus comanditários. E por que é que os crimes de abuso de liberdade de imprensa praticados por jornalistas nunca foram amnistiados?Só que todos sabem e todos fingem não saber. Nada como uma amnistia em que se reparta o seu maná um pouco por cada um, para que ninguém fale, ninguém recalcitre, todos agradeçam e ninguém queira saber demais.6. Finalmente, uma sugestão.Sendo que cada vez parece mais estranha tanta crispação, tanta recriminação e tanta justificação sobre este problema, sugiro que haja um debate nacional, não sobre o binómio amnistia/pedofilia, mas sim sobre as amnistias em geral.É que os portugueses já perceberam que estar a discutir agora se podem ser perdoadas penas a quem nem sequer condenado foi, sendo possivelmente um exercício de ginástica mental inútil para o que hoje interessa, só pode estar ao serviço de jogos políticos de adultos e não da defesa das crianças de quem o país se deveria ocupar.Por isso, para elevar o nível, irrite-se quem se irritar, discutam-se todas as amnistias, uma a uma, artigo a artigo, perguntando porquê este crime e não aquele outro, questionem-se os perdões de pena, interroguem-se, enfim, os indultos para que saiba, para que conste porque foi assim que uns vieram para casa e outros ficaram na cadeia.Os políticos que acusam os juízes de prender arbitrariamente, mostrem-nos que não soltaram arbitrariamente.E porque em democracia não há perguntas proibidas, o que pode é haver respostas embaraçosas, nisto sim, ponto final.

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