Massive Attack com música de laboratório e activismo político em França

São 20h30, é terça-feira, e um rumor imenso percorre o espaço "Le Phénix" onde, nos próximos cinco dias, se vão realizar alguns dos concertos mais importantes do Festival Printemps de Bourges, o maior evento do género em França e um dos mais relevantes da Europa.Em palco, dentro de meia-hora, vão entrar os Massive Attack, uma das primeiras datas europeias da digressão "100th Window". No fundo, o sonho de qualquer evento de grandes dimensões: ter no dia do seu arranque um daqueles raros projectos no contexto da música actual que consegue aliar o sucesso artístico ao comercial.Um som profundo de graves, como que saído das entranhas da terra, faz com que cinco mil pessoas, envolvidas pela escuridão, olhem na direcção do palco. A música ainda não começou e um ambiente de tensão já percorre toda a plateia. Por momentos, é como se pudéssemos ouvir as pulsações cardíacas de toda aquela massa humana. Ampliadas e expostas numa espécie de rumor sintético.Às 20h55, um ecrã gigante começa a disponibilizar, em tempo real, informações sobre o local onde estamos - temperatura, número de habitantes e demais dados sobre a pequena cidade de Bourges, no centro de França. Às 20h59, um relógio electrónico começa a contagem decrescente. O público grita em uníssono - 7, 6, 5, 4, 3, 2... É agora!O som produzido pelo baixista em conjugação com o baterista é pulsante, balança sobre si próprio e faz estremecer. Nos teclados, alguém se disponibiliza para instituir uma atmosfera densa, asfixiante. De vez em quando, o guitarrista corta o ar com investidas ruidosas e compactas. Uma violinista atrai uma sonoridade exótica. Estão todos de preto, tal como o loiro 3-D (Robert Del Naja), o homem que rumina palavras de forma imperceptível como se fosse mais um instrumento. Foi ele que assumiu o comando do colectivo de Bristol no último álbum, "100th Window", e é sobre ele que se concentram as atenções. Estamos a ouvir "Future proof", o primeiro da quase totalidade dos temas do álbum "100th Window" que irão ser tocados ao longo da noite.O Iraque no Printemps de BourgesA meio da interpretação, 3-D vira-se e olha para o ecrã. Números e mais números digitais vão-se sucedendo. A geração Net na assistência está hipnotizada. É como se um computador, sem controlo, nos fosse informando das estatísticas globais mais aterradoras: gastos em armas, erosão do solo, destruição da floresta, emissões de dióxido de carbono. E a numeração digital continua transformando o palco num gigante espaço avermelhado, irreal.Seguem-se mensagens:"Onde está o armamento de destruição massiça?""O mundo está mais seguro hoje?""A humanidade está em crise?"E o público acorda do torpor narcótico da música inspirada no dub. Acorda para a realidade, manifestando-se ruidosamente com a alusão ao Iraque.Estes são os novos Massive Attack. Projecto de um homem só, 3-D, e de todas as suas obsessões. Longe vão os tempos das contaminações inspiradas na música negra do histórico álbum "Blue Lines". Agora, temos música de laboratório, abstracta e precisa, e activismo político. Estão mais opressivos e clínicos, mas não menos emocionantes e futuristas. Ao longo de todo o concerto irá ser assim: um clima de tensão, dominado por uma música onde predominam os baixos envolventes, as batidas implacáveis, as guitarras em distorção e uma magnífica instalação cénica sob um fundo de informações estratégicas, económicas e políticas. Um bailado de cifras e de letras, ao melhor estilo do filme "Matrix", num trabalho cénico invulgar que permite interacção em tempo real.O mistério de Sinead O'ConnorAo contrário do que estava previsto, a cantora Sinead O'Connor não compareceu - ao longo da noite foram sendo projectadas mensagens no ecrã que indiciavam a sua presença adensado ainda mais o mistério - tendo as vozes femininas ficado a cargo de Dot Allison e Debbie Miller. A primeira não conseguiu fazer esquecer nem O'Connor (em "Black milk" e "Special cases"), nem Liz Fraser (na interpretação de "Teardrop"), mas a segunda portou-se à altura nas abordagens vocais a "Safe from harm" e "Unfinished sympathy".Este último tema, tocado no primeiro de dois "encores", resultou num dos momentos altos com toda a banda a acabar em desbunda. Como já havia sucedido no concerto de Lisboa do Pavilhão Atlântico há anos, as maiores ovações foram dirigidas para Horace Andy. A voz em falsete e a presença carismática do veterano cantor de reggae parecem conviver na perfeição com os crescendos de intensidade de "Angel" e de "Everywhere" ou da sonoridade dub do mais clássico "Hymn of the big wheel".O outro sobrevivente dos Massive Attack, Daddy G, surgiu para cantar com 3-D em "Mezzanine" e "Rising sun", fazendo recordar a anterior digressão do projecto, mais centrada na energia e nas vibrações do rock. Agora, essas propriedades continuam presentes, mas diluídas por uma alquimia sonora mais minimalista e estruturada à volta de uma noção de espectáculo global. Este é um concerto feito à medida da geração dos computadores e da Internet. Evocando as suas potencialidades e limitações.No final, faltavam cinco minutos para as 23h, enquanto o colectivo toca em desvario "Safe from harm", vão sendo projectados nomes de vírus da Net, ficheiros infectados e mensagens debitadas por fãs: "Na Net todos espreitam todos", "Os Massive estão cada vez mais futuristas", "Não compreendo Bush nem a sua estratégia; ele quererá compreender-me?".Às onze da noite o fim. Volta o rumor inquietante. Em Bourges, a estratégia dos Massive venceu.

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