New York, New York

Spike Lee estava em Los Angeles no dia 11 de Setembro de 2001. O realizador tentava convencer Arnold Schwarzenegger a fazer o papel do "boxeur" alemão Max Schmeling, campeão do mundo de pesados entre 1930 e 1932, na biografia que preparava sobre Joe Louis, o "boxeur" negro que haveria de derrotar aquele que foi usado pela propaganda de Hitler como o símbolo do super-homem ariano.

Spike acordou cedo nessa manhã para telefonar ao filho, desejar-lhe um bom primeiro dia de aulas em Nova Iorque. Do outro lado da linha ouviu a mulher: "Spike, liga a televisão..." Uma das torres do World Trade Center já tinha sido atingida e Spike apanhou em directo o embate do segundo avião.

Os aeroportos fecharam nessa terça-feira, e Lee conseguiu apanhar o último comboio que partia da Union Station de Los Angeles (com a cumplicidade de uma supervisora, uma mulher negra, foi colocado no lugar do revisor). Chegaria a Nova Iorque três dias depois.

O projecto sobre Joe Louis ficou suspenso, e em Maio de 2002 Spike Lee estava a filmar "A Última Hora", filme baseado num livro de David Benioff (escrito, claro, antes do ataque ao World Trade Center) que conta as últimas horas de errância de um "yuppie" na Big Apple, antes de entrar para a prisão onde vai cumprir uma pena de sete anos por tráfico de droga.

A Nova Iorque que o realizador encontrou quando desceu do comboio já não era a Nova Iorque do livro de Benioff - definitivamente, já não era a cidade que Lee deixara dias antes. "Como é que podíamos fazer este filme em Nova Iorque tão próximo do 11 de Setembro e pretender que nada daquilo tinha acontecido?", pergunta Spike Lee, referindo-se a acusações que lhe fizeram de estar a aproveitar, sub-repticiamente, uma tragédia. Com essa pergunta ele também quer dizer que não pretende entrar num despique para afirmar um feito qualquer, por exemplo para se afirmar como o primeiro realizador a interromper a moratória que o cinema americano tinha imposto a si próprio de não mexer na ferida do 11 de Setembro.

Nova Iorque não era, de facto, a mesma. Spike Lee recorda-se, falando a um grupo de jornalistas no último Festival de Berlim: "Toda a gente estava apaixonada por toda a gente. As pessoas beijavam os polícias, negros beijavam polícias, polícias beijavam pessoas de cor. Toda a gente era simpática com toda a gente, desconhecidos abraçavam-se. Foi de tal forma especial que durante um mês os índices de criminalidade desceram, as queixas contra a polícia desceram e os polícias bateram menos em pessoas de cor", diz, e como é verificável a nostalgia e a emoção aparecem aqui mescladas com uma pequena dose de cinismo. Em "A Última Hora", contudo, só há espaço para a emoção.

Este é o filme de alguém (as personagens, mas também o próprio realizador) que acordou depois de uma catástrofe. Que, conhecendo como a palma da sua mão o cenário onde se move, Nova Iorque, olha para ele como se já não o conseguisse reconhecer - sem que ao mesmo tempo seja possível sublinhar as diferenças.

Sob a luz branca de Nova Iorque, passeia, solitário, um homem e o seu cão. Um "yuppie", chamado Monty, experimenta em agonia lenta os seus últimos dias de liberdade: sonho demasiado com os seus sonhos e ultrapassou as fronteiras da moralidade. Depois da tragédia, e atordoado também, Spike Lee faz um filme em que suspende alguns dos sinais mais gritantes do seu cinema (a crispação, gestos de guerrilha e alguma demagogia à volta do tema: a cor da pele) e abraçou, com uma generosidade que se calhar não vai ser repetida, uma personagem (mais o seu círculo de amigos) em queda: o herói americano.

um homem e o seu cão.

Genérico inicial: holofotes que atiram luz para o espaço, no lugar do World Trade Center. A música é a de uma cerimónia litúrgica - a banda sonora vai ser decisiva para o abraço interior e emocional que percorre este filme: uma sinfonia urbana, explica o realizador, que inclui "motivos célticos, para homenagear as várias corporações, tradicionalmente irlandesas, de bombeiros da cidade, motivos árabes, para assinalar a presença dos taliban, e Bruce Springsteen", a América.

Não se vai falar nunca do 11 de Setembro, embora haja um plano em que Lee coloca personagens num arranha-céus com uma janela a dar sobre o Ground Zero, como se quisesse mesmo escancarar (é um momento explícito, de catarse, que serve até para responder à invisibilidade a que as imagens das torres ficaram condenadas, por exemplo com a operação de limpeza operada em alguns cartazes da produção de Hollywood). Há outra sequência em que, num momento de confronto desesperado consigo mesmo, Monty olha para a sua imagem ao espelho e atira uma série de "fuck you" a Nova Iorque, ao "melting pot", aos bairros "in", a Osama bin Laden, a ele próprio, à família, aos amigos. Mas, em tudo o resto, a perda e a queda, em "A Última Hora", estão para além das palavras e daquilo que pode ser nomeado, já consumiram o interior das imagens, entranhadas nas personagens, na cidade que Spike Lee filma com lentidão, como se precisasse de tempo para fixar o olhar e reconhecer. E está na figura que caminha pelas ruas, um "yuppie" e o seu cão.

Nas últimas horas, Monty (Edward Norton) vai encontrar a namorada (Rosário Dawson), o pai (Brian Cox) e os amigos (entre os quais Philip Seymour Hoffman), para a reunião de despedida. É um retrato de grupo, como outra evocação de Nova Iorque feita pelo realizador, "Verão Escaldante", mas é o exacto negativo desse esfuziante filme sobre a cidade nos anos 70. Em "A Última Hora", a música já não é o comboio que puxa pelas cenas, e as personagens já não disfarçam o embaraço de estarem juntas - o que as liga é algo que ficou num passado distante, na infância talvez, mas essa memória já não consola (há uma sequência, numa discoteca, que é significativa: um filme a lidar directamente com o vazio, deixando as personagens penduradas no plano à espera de um contracampo que não chega).

Um grupo e Nova Iorque... não é novo no cinema de Spike Lee. Nem o facto de não haver personagens negras nas figuras principais (já acontecia em "Verão Escaldante") - como Lee muitas vezes entra no jogo de se afirmar como detentor de um património figurativo (do estilo, só ele é que pode filmar personagens que têm a cor da sua pele), é normal que quando isso não acontece o facto seja demasiado valorizado. Mas algo, na verdade, neste projecto de apenas 15 milhões de dólares (e que não é o filme formalmente mais imaculado do cineasta), fez com que as imagens de marca fossem naturalmente suspensas. E que dessa suspensão brotasse um filme sobre, mas sobretudo "para", Nova Iorque, inscrevendo-o numa tradição amorosa que liga cineastas americanos a uma cidade (como "O Cowboy da Meia-Noite", "Taxi Driver", "O Toiro Enraivecido" e "Nova Iorque Fora de Horas", alguns dos títulos que Lee deu a ver aos seus actores para que eles atingissem o desejado ponto emocional). E que Lee se devotasse a uma personagem, Monty, que em tudo se inscreve numa memória afectiva nunca antes convocada pelo realizador: um (anti)herói branco, que paira numa espécie de letargia moral, uma passividade e um narcisismo que encontramos, por exemplo, em ícones do passado do cinema americano, como Montgomery Clift (a personagem chama-se Monty em homenagem ao actor de "Um Lugar ao Sol") e Paul Newman (em casa de Monty, há um poster de "Cool Hand Luke", o filme de Stuart Rosenberg em que Newman era presidiário, "poster" esse que é mostrado obsessivamente, como um silencioso diálogo entre o rosto do individualista derrotado que foi Newman nesse filme e a personagem de Norton - ou seja, o coro a anunciar uma fatalidade [ver texto na página seguinte].

"Estávamos a conversar sobre os pormenores do apartamento da personagem", conta Edward Norton, "e sabíamos que tinha de haver um elemento gráfico na sala que dissesse algo sobre a forma como a personagem olha para si próprio. O 'production designer' lembrou-se do 'poster' de 'Cool Hand Luke', que, para além de ser bonito, tinha uma frase que dizia que se tratava da história de um homem que não se conforma. É o sentimento romântico 'à cowboy', de alguém fora da lei, e há alguma ironia no facto de Paul Newman nesse filme acabar destruído". Como Monty, que Edward Norton vê como "uma figura na linha dos heróis da tragédia clássica", consumidos irremediavelmente pelos seus actos.

"Spike e eu falámos sobre a necessidade de mostrar, de forma inequívoca, que a personagem não vai escapar. Não queríamos comprometer o centro moral do filme: há consequências quando não examinamos a moralidade dos actos que praticamos. Como no livro, Monty é uma personagem simpática, com uma espécie de luz à sua volta, com uma certa graça, porque as coisas sempre lhe correram bem. Até que desliza para uma zona cinzenta, moralmente falando... É uma personagem interessante para um actor", diz Norton, que concordou em receber muito menos do seu "cachet" habitual para o projecto poder ir para a frente (percebe-se porquê: o actor conta que um dos primeiros filmes que viu que o levaram a sair da sala e voltar às bilheteiras para comprar novo bilhete e entrar outra vez foi "Do the Right Thing").

A intervenção de Norton em "A Última Hora" não se limitou à interpretação. Isso não é inédito: no passado, participou na escrita de argumentos (ou ajudou projectos "doentes"), como "Larry Flynt", "American History X" (reescreveu o argumento antes de aceitar participar como actor) e, mais recentemente, "Frida", que não teria ido para a frente sem a sua intervenção - foi um "labour of love", porque "Frida" é um projecto pessoal da sua namorada, Salma Hayek. A sua contribuição especial em "A Última Hora" ("envolvimento que não teve nada a ver com manobras de ego", garante Spike Lee) é a sequência final, talvez a mais arriscada do filme, em que Monty é levado pelo pai para a prisão e olha para a sua vida. Mas não olha para trás, não se trata de um "flashback", olha para a frente. Mas é um "flashforward" impossível, a vida como poderia ter sido se... se se cumprisse a mitologia romântica do herói americano, rebelde, individualista e impune. E se fosse ainda possível cantar, mesmo de forma sussurrada, "New York, New York".

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