Formigas inspiram modelos computacionais complexos

Sabia que, em muitos sistemas actuais de telemóveis, o encaminhamento das chamadas é realizado através de algoritmos baseados no comportamento das formigas? Ou que estes estão a ser utilizados por companhias aéreas no planeamento optimizado das rotas de aviões entre vários aeroportos? E que, nos EUA, algoritmos idênticos estão a ser usados em sítios da Internet destinados a combater o excesso de trânsito através da partilha de automóveis, associada à criação de corredores especiais nas auto-estradas (o chamado "car pooling")? Neste caso, as rotas e os pares ideais de condutores e passageiros, consoante o local de trabalho e o local de residência (um problema combinatório explosivo em possibilidades), são fornecidos por estratégias baseadas no comportamento das formigas - estando o jogo combinatorial a ser feito por sistemas-formigueiro num servidor, aos quais as pessoas se ligam para estabelecerem os primeiros contactos. Estas soluções baseiam-se nos chamados sistemas-formigueiro, modelos computacionais em que os algoritmos são inspirados no comportamento de colónias de formigas. Trata-se de uma área de investigação bastante recente, desenvolvida a partir da segunda metade da década de 90, no âmbito da chamada Inteligência de Enxame - que, por sua vez, já é um campo particular da actual investigação científica em vida artificial e nas chamadas ciências da complexidade. Os desenvolvimentos nestas áreas têm levado à conclusão de que os fenómenos complexos podem resultar da interacção simultânea entre múltiplos mecanismos simples. E que, então, algoritmos simples também podem ser usados para a resolução de problemas altamente complexos.A ideia passa pelo estudo directo do comportamento dos insectos sociais, como as formigas, as térmitas ou as abelhas, sendo estes depois usados como paradigma para a resolução de diferentes problemas de elevada complexidade. Trata-se de "uma forma alternativa de conceber sistemas inteligentes", como explicou a Computadores Vitorino Ramos, investigador que trabalha em vida artificial e sistemas-formigueiro, no Centro de Geossistemas do Instituto Superior Técnico (IST), em Lisboa. Estes sistemas inteligentes estão, segundo estes cientistas, "mais bem preparados para abordar problemas complexos nas suas diferentes facetas, sobretudo aqueles cujo enunciado inicial está em permanente evolução ou alteração". "Há muito que a Natureza encontrou diferentes formas de resolver problemas complexos e esta área [da inteligência de enxames] explora-o de modo concreto". No fundo, trata-se de transportar para dentro do computador padrões de comportamento do formigueiro - nomeadamente, os mecanismos através dos quais se auto-organizam. O investigador português foi, aliás, o primeiro a desenvolver um sistema-formigueiro aplicado à percepção, processamento e reconhecimento de imagem. Vitorino Ramos criou um modelo computacional cujas regras se baseiam no comportamento e nas funções de resposta a estímulos ambientais deste tipo de insectos sociais, e que tem aplicações práticas na classificação de textos ou no reconhecimento de imagens. "Este modelo bio-inspirado já permitiu, por exemplo, distinguir granitos portugueses de pedras chinesas vendidas no mercado como sendo nacionais, induzindo em erro a maioria dos especialistas", adianta o investigador. O sistema de Vitorino Ramos foi utilizado num projecto europeu (COSS) que, entre 1996 e 1998, reuniu o IST, a Universidade de Granada (Espanha) e a Universidade de Bolonha (Itália), bem como as associações de rochas ornamentais portuguesa, espanhola e italiana. O modelo de Vitorino Ramos é inspirado no trabalho de dois físicos, Dante Chialvo (Argentina) e Mark Millonas (EUA), que, em 1995, construíram um modelo algorítmico que conseguiu reproduzir o comportamento das colónias de formigas na formação de carreiros. As formigas, ao deslocarem-se, deixam um rasto de feromona - substância química volátil que reconhecem e que lhes é agradável. As construções dos trilhos do formigueiro (a que vulgarmente chamamos carreiros), evoluindo no tempo para o trajecto mais curto entre dois pontos, baseiam-se nesta distribuição de feromona. Ou seja, as formigas apercebem-se umas das outras e das suas construções através de sinais indirectos (neste caso, a feromona). Na prática, como explica o artista plástico Leonel Moura no seu livro "Formigas, Vagabundos e Anarquia - Ensaio sobre Vida Artificial, Arte e Sociedade" (aAAL -aLife Art Architecture Lab, Janeiro de 2003), o modelo pioneiro de Chialvo e Millonas "simula a percepção e deslocação ambiental de cada formiga, a capacidade de reconhecer feromona (estímulos) e de proceder à sua deposição, assim como de a fazer evaporar no tempo". No facto de a feromona ser uma substância volátil reside o truque subtil da natureza: é a evaporação que permite que um carreiro de formigas formado para ir buscar alimento a um dado ponto desapareça quando deixa de haver alimento nesse ponto, reforçando um outro que conduz a novos locais de alimento. Um factor que "aumenta muitíssimo a capacidade de adaptação do sistema, funcionando como uma espécie de consciência colectiva global da estratégia distribuída, um conceito abstracto da colónia, fluido e aglutinador", sublinha Vitorino Ramos."É através destas interacções simples que dum sistema mais ou menos caótico [a imagem que temos do formigueiro] emerge a ordem, uma espécie de superestrutura - neste caso, o formigueiro -, da qual as partes (formigas) não têm consciência global", avança Vitorino Ramos. "Em resumo, o padrão final é uma propriedade não hierárquica e emergente do sistema, e não uma propriedade imposta nele por uma qualquer influência externa". É fácil perceber que, na base destes sistemas, estão conceitos-chave como o de comportamento emergente ou o de auto-organização, que pode ser descrita como a "ausência de um controlador global que dita o comportamento das partes", ou o fenómeno das entidades colectivas em que as partes trabalham para um todo que não conhecem por si, construindo algo colectivamente a partir sobretudo das dinâmicas locais de relações entre as partes. [As formigas não possuem um plano prévio para chegar ao alimento pelo caminho mais curto; nem o "conhecem" individualmente, antes o "descobrem" colectivamente.] A esta forma de comunicação indirecta através do ambiente chama-se "stigmergia" - um dos conceitos mais importantes nestas formas de vida artificial e também na sua aplicação ao campo artístico (ver caixa).A pergunta que interessa aos cientistas da vida artificial é, então, quais são os mecanismos - embutidos em cada indivíduo - que participam na construção do padrão comportamental, ou que permitem a emergência de ordem nestes sistemas naturais colectivos? Isto é interessante para a informática "porque permite criar algoritmos sem receitas para cada tipo de subproblema", justifica Vitorino Ramos. "Esta abordagem 'bottom-up' (do particular para o geral) facilita a criação de modelos computacionais, já que é muito mais simples criar algoritmos - conjunto de regras matemáticas - a partir de interacções básicas entre os indivíduos do que, a partir da análise da estrutura maior e admitindo uma série de hipóteses pelo caminho descendente, modelizar o 'todo' complexo do sistema", explica o investigador português. Ou seja, em vez de se analisar o todo e tentar extrair dele regras globais (abordagem clássica em ciência), vai-se caminhando do menos complexo para o mais complexo, das partes para o todo - a chamada abordagem "bottom-up" (que, à letra, significa de baixo para cima). E, segundo Vitorino Ramos, há uma outra grande vantagem desta abordagem: "Não tenho de ensinar ao sistema [pré-programar] como se deve comportar face a surpresas" - o sistema é adaptativo. A abordagem "de baixo para cima" permite que, "ao desafiar o sistema com 'factores-surpresa' (um obstáculo no caminho das formigas ou novos objectos conceptuais com que interagem, por exemplo), o modelo se adapte e reaja, criando uma forma de inteligência artificial para a qual nunca foi programada", continua o investigador. "Isso evita-me, entre outros problemas, ter de pensar em como deve o sistema pensar, a cada nova surpresa. Prefiro que ele por si se vá desenrascando."Em concreto, o investigador português está "preocupado sobretudo em perceber como fazer emergir conceitos como a percepção", por exemplo, dos contornos de uma imagem. "Se os seres humanos o fazem a partir de múltiplas células visuais presentes na retina, e a partir de milhares de neurónios, bastante simples no seu comportamento, ora disparando sinais ora inibindo-se, um pouco à semelhança do papel de reforço positivo e negativo presente na feromona, não vejo razão para que não tentemos o mesmo a partir de sistemas colectivos stigmérgicos".Partindo do modelo básico de movimentos (Chialvo e Millonas, 1994), Vitorino Ramos alterou as equações básicas, "introduzindo assim uma outra capacidade: se a emergência de ordem no formigueiro ocorre por as formigas reconhecerem a feromona, será que não poderão reconhecer e responder simultaneamente a outros estímulos suplementares, como um texto ou uma imagem?"O modelo de Vitorino Ramos (1997-2000) consistiu, assim, numa "extensão do modelo anterior, tendo sido desenvolvidos novos mecanismos intrínsecos a cada formiga", como refere Leonel Moura ("Formigas, Vagabundos e Anarquia") - nomeadamente, mecanismos que permitem ao formigueiro artificial "interagir, a cada momento, não só com o mapa cognitivo da colónia (tal como antes), mas simultaneamente com o seu novo habitat - neste caso, a imagem digital"."Um dos problemas no reconhecimento de imagem é a segmentação da imagem em partes homogéneas que façam sentido" (partir a imagem em segmentos classificáveis). "A vantagem é que o sistema-formigueiro vai produzir imagens mais fáceis de segmentar que as originais", resume Vitorino Ramos. Outra vantagem é que, se se alterar completamente a imagem dada, não é preciso reprogramar os algoritmos. Nesta experiência pioneira de utilização da imagem digital como ambiente de interacção (habitat) para um sistema-formigueiro, o investigador português começou por lançar uma colónia de formigas artificiais em cima de uma imagem do rosto de Kafka ("Uma estranha Metamorfose - De Kafka à Formiga Vermelha", Vitorino Ramos, 1997-2000). As formigas criaram então a sua percepção da imagem dada - uma segunda imagem, se quisermos -, ou seja, o formigueiro fez emergir uma percepção da imagem do rosto de Kafka, dada pela distribuição espacial de feromona (ver imagem). Mas, num segundo momento, essa imagem por onde as formigas se passeavam foi retirada e substituída por outra - no caso, a da cabeça de uma formiga vermelha. Esta experiência demonstrou que o sistema-formigueiro de Vitorino Ramos tem alguma forma de memória colectiva e alguma resistência à nova informação, analisa Leonel Moura. É que as formigas demoraram algum tempo a adaptar-se e a produzir uma imagem nova, mantendo (durante algum tempo) uma memória da imagem inicial. Este é um dado importante, por exemplo, para o reconhecimento de imagens em movimento sobre um fundo estático, indica Vitorino Ramos. Esta capacidade para o "desenrascanço", na expressão de Vitorino Ramos, é muito útil para a classificação de informação ou a sua visualização semântica, sejam imagens, textos, mensagens em grupos de discussão "on-line", conteúdos da Web - "ou qualquer outro objecto conceptual, desde que possa ser decomposto em parâmetros matemáticos", refere o investigador. Permite, por exemplo, que não seja preciso alterar o sistema de classificação de cada vez que há novas entradas: basta inseri-las no sistema "e as formigas que se desenrasquem, encarando os novos dados como uma perturbação geográfica local, tentando rearrumá-los por consenso colectivo", dessa forma evitando "o retrabalho no sistema algorítmico de classificação". Utilizando o sistema-formigueiro de Vitorino Ramos, um jornalista de televisão poderia introduzir a imagem de uma portagem no sistema de pesquisa na base de dados, e o computador devolveria apenas imagens semelhantes (e não uma infinidade de imagens relacionadas com o tema, a maioria das quais inúteis), criando simultaneamente um atlas geográfico-semântico dessas imagens, podendo - em tempo real e na presença de novos dados - ser visualmente readaptado.

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