Torne-se perito

"A intervenção militar dos EUA contra o Iraque foi baseada numa bola de cristal"

A guerra unilateral desencadeada pelos Estados Unidos e Reino Unido contra o Iraque significa uma vitória da guerra preemptiva sobre a preventiva. Na perspectiva de José Azeredo Lopes, o precedente do Kosovo não pode ser utilizado como argumento para justificar a actual intervenção militar.Professor de Direito Internacional Público e director do Gabinete de Estudos Internacionais da Universidade Católica, José Azeredo Lopes lecciona no Porto e é considerado um dos mais conceituados especialistas portugueses nesta área ainda algo volátil e sujeita a diversas interpretações. O PÚBLICO entrevistou-o quando a "terceira guerra do Golfo" se encontra numa fase crucial. P- Um dos principais argumentos esgrimido pelos responsáveis que justificam a actual intervenção militar contra o Iraque é o famoso precedente do Kosovo, uma guerra também desencadeada à margem do Conselho de Segurança da ONU. Já ocorreram aliás outras intervenções dos EUA sem qualquer aval, como sucedeu por exemplo no Panamá ou em Granada. Que diferenças podem ser estabelecidas entre estas situações?R- Desde logo não colocaria no mesmo plano nem Granada nem o Panamá, porque se trataram pura e simplesmente de acções unilaterais dos Estados Unidos feitas totalmente ao arrepio das Nações Unidas. Quer dizer, sem que as questões de Granada e do Panamá tivessem sido sequer discutidas, por exemplo, no Conselho de Segurança. Foi uma decisão estritamente unilateral dos EUA, como foi por exemplo o bombardeamento da Líbia em 1986, como foi o bombardeamento de Bagdad em 1993 depois do atentado contra o então ex-Presidente Bush, claramente uma medida de represália dos EUA... O único paralelo que há em relação ao Kosovo é que, primeiro, há quem argumente com a ideia do precedente porque é necessário perceber-se a situação à luz do Direito. A invocação de precedente no Direito internacional destina-se a formar um costume internacional, a demonstrar que já existe uma prática consistente dos Estados que mostram que em certas circunstâncias, e para falarmos do caso concreto, é possível a um Estado agir unilateralmente sem, ou contra, o Conselho de Segurança. O caso do Kosovo não é precedente por dois motivos principais. Primeiro, porque a intervenção no Kosovo também foi considerada ilícita pela generalidade da doutrina do Direito internacional. Segundo, mesmo que admitíssemos que tinha sido conforme ao Direito, não é precedente porque o caso do Kosovo é totalmente distinto do Iraque. P- Em que medida?R- Primeiro, no Kosovo estava em causa a violência exercida pelo centro, neste caso Belgrado, sobre uma parte da sua população, os kosovares de origem albanesa. Era uma situação de violência interna e de violência sistemática e em larga escala. No caso do Iraque não foi alegado que o Iraque estivesse a atacar um qualquer grupo no interior do Estado, como tinha feito em 1991 contra os curdos, mas foi antes considerado uma ameaça à paz e segurança internacionais pelo facto de, no entender da organização, não ter cumprido as suas obrigações em matéria de desarmamento. O caso do Kosovo era por outro lado totalmente distinto do caso do Iraque. No primeiro todos os intervenientes, que por acaso se mobilizaram em torno da bandeira da NATO, disseram que se estava quase perante uma situação de estado de necessidade. Uma situação em que não havia hipótese de qualquer outra medida que pudesse impedir o que se considerava ser uma prática de violação gravíssima dos direitos dos kosovares de origem albanesa. Foi sistematicamente invocada uma noção de urgência humanitária, de necessidade humanitária pelos Estados intervenientes, pelo Reino Unido, pelos Estados Unidos, por muitos dos países da NATO que participaram nas operações militares. P- O famoso direito moral de intervenção.R- Evidentemente. Isso leva-nos a quê? Como a inserção de um direito de intervenção humanitária no Direito internacional consuetudinário não 'colou', então foi invocada uma quase legitimidade moral de intervenção. É a tese segundo a qual existem situações em que o Direito não consegue pura e simplesmente evitar determinados factos gravíssimos, e em que prevalece um direito moral de intervenção para salvar vidas. Era disso que se falava quando se atacou a Jugoslávia em 1999. No caso do Iraque nenhum destes pressupostos está preenchido. É evidente que Saddam Hussein cometeu atrocidades e barbaridades relativamente a parcelas da sua população. [...] Mas primeiro verificamos que o Iraque não era evidentemente uma ameaça iminente à paz e segurança internacionais. Todos os analistas, fossem americanos ou ingleses, coincidiam em afirmar que embora o Iraque pudesse ter armas de destruição maciça, detinha menos armamento e era menos poderoso que em 1991. Todos insistiam em dizer que poucos Estados, ou mais nenhum Estado, estaria tão vigiado e controlado como o Iraque. Em terceiro lugar, e bem ou mal, o mecanismo instituído pelo Conselho de Segurança estava a funcionar, e neste aspecto basta ler as declarações de Hans Blix para verificar que havia progressos em direcção ao desarmamento. Isso leva-nos a uma conclusão óbvia, e que desde logo impede que se estabeleça um paralelo com o Kosovo. É que não se vislumbra aqui qualquer urgência ou estado de necessidade internacional que obrigasse os EUA e seus aliados a intervir da forma como estão a intervir. Desse ponto de vista, e na minha opinião, a legalidade tem que estar absolutamente excluída. [...] Para além disso, há várias outras razões que apontam para que o precedente do Kosovo não possa ser invocado. Essas declarações são mesmo fornecidas pelos intervenientes desta operação militar. Recorde-se que em determinada altura Tony Blair invocou em primeiro lugar o desarmamento, depois começou a invocar a lógica do combate a uma tirania, depois foi invocada uma legitimidade moral contra uma tirania... Isso significa que, de repente, tínhamos um ramalhete infindável de justificações para o ataque. E se olharmos para o que é hoje a doutrina estratégica os Estados Unidos que está a ser aplicada neste caso, vê-se que já nem sequer se faz referência a um ataque preventivo, mas a uma legítima defesa ou de uma intervenção preemptiva. Isto significa que os EUA aceitam que não existe qualquer ameaça imediata e instantânea para a paz internacional, aceitam que essa ameaça em termos de Iraque não é sequer iminente. Assim, situam o ataque ao Iraque numa lógica preemptiva. Ou seja, no futuro, e no entender dos Estados Unidos, é mais que provável que o Iraque venha a servir-se dessas armas e dirigi-las para o mundo ocidental. É enfim o que chamo de forma um pouco irónica uma espécie de intervenção baseada na bola de cristal. Isto é, os EUA decidiram, pela sua análise, que algures no futuro, não sabem quando, é inevitável que o regime iraquiano venha a conspirar contra o Ocidente e a servir-se ou transmitir as suas armas de destruição em massa a grupos que depois vão exercer acções contra o Ocidente. P- Isto significa que cada vez mais a lógica militar se impõe à lógica negocial? Qual o futuro da ONU, atendendo a esta "humilhação" a que foi sujeita?R- Penso que Nações Unidas teriam sido muitíssimo mais humilhadas se, por exemplo, os membros do Conselho de Segurança tivessem acedido ao ultimato que foi lançado sobre o CS. Ficariam assim totalmente desacreditados se tivessem servido como uma espécie de notário que se limitava a reconhecer a assinatura dos Estados Unidos neste ataque contra o Iraque. Aí haveria quem argumentasse que o sistema ou a decisão de ataque tinha passado pelas Nações Unidas, mas toda a gente saberia que evidentemente não seria isso que aconteceu. Na minha perspectiva, após a famosa cimeira das Lajes, surgiu aquele ultimato que considero inacreditável colocado sobre o Conselho de Segurança. Ultimato tanto mais inacreditável quanto as partes, a saber os EUA, Espanha e Reino Unido, já tinham decidido que não haveria qualquer outra negociação. Tanto assim que a decisão de retirada da proposta de segunda resolução é comunicada na manhã do dia seguinte, sem sequer se terem iniciado conversações com os outros membros do Conselho de Segurança. Isto não tem propriamente a ver com o facto de estes três Estados pensarem que a França vetaria a sua resolução. Mas porque esses Estados perceberam de vez que não alcançavam os nove votos e a famosa 'maioria moral'. Na minha perspectiva foi basicamente um embuste... Outro aspecto importante é o facto de a missão de inspectores ter sido sistematicamente criticada ou até sabotada por parte dos Estados Unidos. Não é segredo que o senhor ElBaradei [responsável pela Agência Internacional de Energia Atómica] reagiu escandalizado ao facto de lhe terem sido fornecidos documentos que indiciavam a compra de materiais proibidos à Nigéria mas que pura e simplesmente tinham sido falsificados. E, ainda por cima, mal falsificados. Nem aí houve um cuidado especial. ElBaradei e Blix várias vezes disseram que muitas das 'dicas' relativamente a armas de destruição maciça eram sempre e sistematicamente 'flops'. Os inspectores chegavam a um local e não havia rigorosamente nada. Vimos o que foi a intervenção de Colin Powell no famoso dia de apresentação de provas. Para mim, uma vergonha internacional. Quando um secretário de Estado vai ler, com enorme entusiasmo, um documento pura e simplesmente copiado de uma tese de doutoramento com 11 anos e apresenta elementos, todos por demonstrar, sobre o que considera serem provas esmagadoras contra o Iraque, pelo menos eu coloco questões. Ou denota uma falta de profissionalismo total, escandalosa, ou então denota má fé. P- Num artigo recente divulgado por diversos "media", o actual líder do conselho de segurança do Pentágono, Richard Perle, congratula-se com o eventual colapso das Nações Unidas, mesmo com o seu fim. Que significado atribui a estas declarações?R- O efeito traumatizante do 11 de Setembro na política externa dos EUA levou a que prevalecessem claramente os sectores mais radicais da administração em detrimento dos mais moderados. E pela primeira vez, e no que até então tinha sido pelo menos um tabu público, os EUA disseram que se fosse necessário prescindiriam totalmente das Nações Unidas. Isso significa que os EUA consideram hoje admissível, do ponto de vista da sua presença no mundo, que tomem decisões pura e simplesmente fora do sistema institucional da ONU. E uma vez feito um primeiro comportamento totalmente 'outsider', como acontece no actual caso do Iraque e muito mais que no Kosovo, infelizmente acredito que a partir de agora possa haver tendência de forma mais reiterada e sistemática para apenas recorrer às Nações Unidas para resolver conflitos menores ou que não colidam directamente com os interesses estratégicos dos Estados Unidos. Vamos ter concerteza novos Timores na ONU, um bocadinho de Camboja, um bocadinho de África, mas as Nações Unidas passam a ser uma espécie de instrumento para conflitos menores na sociedade internacional onde não estejam envolvidos interesses estratégicos, políticos e militares directos dos Estados Unidos.

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