Amália: a revolução de 1962

O disco que mudou o fado surge agora numa edição que vai mudar a nossa maneira de ouvi-lo. A integral das sessões de "Busto" de Amália, em triplo CD, é a sublimação de uma obra-prima.

Foi um disco sem nome que mudou a história do fado. Na capa, tinha apenas um busto de pedra em tons de cinza recortado sobre fundo negro e, no topo da moldura branca que o rodeava, havia só quatro palavras: Columbia (o nome da editora), mono (sinal de que a gravação era monofónica) e, em letras reduzidas, as duas restantes: Amália Rodrigues. Parecia um epitáfio e, no entanto, era o anúncio de um jovial renascimento. Ou de uma revolução. Em 1962, fez agora quarenta anos.

Mas fixemo-nos no disco. À falta de nome, a história arranjou-lhe pelo menos dois: "Asas Fechadas" (título da primeira faixa) ou "Busto" (por causa da escultura de Amália feita por Joaquim Valente e fotografada por Nuno Calvet, que enchia a capa), acabando o último por se impôr à força do hábito. E se era tão importante arranjar-lhe nome é porque ao longo dos anos ele foi constantemente reavaliado como fulcral não só na carreira de Amália (foi, na verdade, o seu primeiro LP digno desse nome, já que os anteriores eram somas de discos mais pequenos, EP ou singles, de 78 ou 45 rotações) como também na história do fado. Porquê? Porque, como escreveu Luis Maio no PÚBLICO, nos anos 90 (num texto recuperado para a actual reedição), este disco "representou uma ruptura com o classicismo então instituído", corporizando "o género de associação entre espontaneidade e visionarismo característicos das obras em que assentam edifícios musicais." Um marco, portanto. Assinalando o "antes" e o "depois" de "Busto".

Mas o que se passou "durante"? Ou seja: o que houve nessa gravação de tão decisivo que tenha levado agora a editora a lançar "Busto" em CD triplo? Uma estranha alquimia de génio, noites em claro e vagabundagens, tudo isto bem aconchegado com arroz de grelos, pastéis de bacalhau e vinho tinto. Amália contava já 42 anos de idade e 23 de carreira quando lhe surgiu pela frente um senhor muito simpático, mais novo (33 anos), com uma música feita a pensar nela. O encontro deu-se na praia do Lisandro, perto da Ericeira, e a cantora recordou-o assim a Vítor Pavão dos Santos no livro biográfico "Amália" (Contexto, 1987): "Um dia estava num acampamento e levaram-me o Alain Oulman, que tinha feito uma música a pensar em mim, o 'Vagamundo'. Fui ouvir e gostei. Seguiram-se outras e fui contra a maré das pessoas que estavam ao pé de mim, que achavam aquilo muito complicado."

O que Amália não sabia é que a "oferta" não foi inocente. "Vagamundo" (que desgraçadamente ainda figura em reedições anteriores ou citações avulsas como "Vagabundo") tinha sido escrita pelo poeta Luís de Macedo, cujo nome real era Chaves de Oliveira, adido cultural na Embaixada de Portugal em Paris, e que juntamente com Couto Viana e David Mourão-Ferreira, haviam fundado em Lisboa as folhas de poesia "Távola Redonda". Ora David já tinha adaptado para Amália o "Barco negro" e Oulman, de ascendência francesa embora tivesse nascido no Dafundo, ansiava por colocar na voz dela poetas que o merecessem. Como Macedo ou Mourão-Ferreira. Os maiores poetas para a maior cantora, diria ele depois.

Poemas roubados

Amália recebeu de braços abertos essa dádiva, como afirmou a Baptista-Bastos numa entrevista para o livro "Fado Falado" (Ediclube, 1999): "Gostava muito dele [de Oulman]. A música dele foi aquela que me abriu... Eu gostava mais de uma linha melódica mais comprida. O fado era muito curtinho. Quadras e quintilhas. (...) Quando bebi aquelas [palavras], bebi-as com muita sede."

A aceitação de "Vagamundo" foi decisiva. Oulman tornou-se amigo de Amália e abriu-lhe um caminho com que ela sempre sonhara: o dos poetas. E este "sempre" não é exagerado, se tivermos em conta que no seu primeiro disco (gravado no Brasil, em 78rpm), a cantora incluiu um fado "roubado" a um poeta, como ela confessa na biografia: "Os primeiros versos de mais qualidade que cantei foram 'As Penas', do Guerra Junqueiro [1950-1923]. Vi aquele poema publicado num jornal, gostei e cantei. Isso foi há muito tempo, porque, em 1945, gravei 'As Penas', no Brasil. Como o meu poder de escolha era maior, comecei a roubar fados dos livros de poesia." A segunda "vítima" foi Pedro Homem de Mello. Amália pegou em "Fria claridade" e fez dele um fado. E o poeta, em lugar de zangar-se, brindou-a com outros. Mais tarde, elogiou-a até na televisão: "Havia poesia na voz extraordinária de Amália que tinha subido até ao povo."

Ela gostava de poesia, alguns poetas adoravam-na, mas dessa atracção mútua ninguém soubera tirar partido. Até que surgiu Oulman e as suas "harmonias novas". Amália sentia-as como fados, mas os músicos que a acompanhavam nem por isso: "O José Nunes [guitarrista], quando ia tocar coisas do Alain, dizia sempre: 'Vamos às óperas'!", confessa Amália a Pavão dos Santos. Não foi por castigo, certamente, mas na primeira reedição esterofónica de "Busto", em 1970, José Nunes foi relegado para segundo plano. A partir das fitas mono originais, deu-se ênfase à viola, no canal direito, e no esquerdo uma nova guitarra (a de Fontes Rocha, curiosamente não creditada no disco) sobrepunha-se à já existente criando um efeito sonoro mais "orquestral". Foi assim que "Busto" chegou a CD, em 1989, e por aí andou ao longo de anos. Até que...

A conspiração

Em 1994, ainda Amália era viva, José Pracana (um dos muitos guitarristas que tocou no funeral de José Nunes, em 1979) sugeriu à Valentim de Carvalho um regresso às fitas originais de "Busto" e uma viagem aos arquivos. Oito anos depois, o resultado é surpreendente. Não só se conseguiu restaurar o som original a partir das fitas mono, encontradas em muito bom estado, como se publicam na íntegra as sessões de gravação originais, com a guitarra e a viola isentas de truques: os nove fados de "Busto" mais nove que vieram a compor o disco "For Your Delight" (editado em Inglaterra em Junho de 1963), duas versões alternativas para este último ("Espelho quebrado" e "Eu queria cantar-te um fado") e o fado "Dura memória", o primeiro que Amália gravou sobre um poema de Camões e que em Portugal viria a ser editado apenas em 1965, num EP intitulado "Amália canta Luís de Camões".

Além disso, as idas aos arquivos propiciaram ainda a descoberta de uma entrevista feita por Henrique Mendes aos três maiores protagonistas de "Busto" (Amália, Alain e David Mourão-Ferreira, autor de quatro dos nove poemas nele incluídos), bem como o registo de três ensaios em casa de Amália, só com Alain ao piano. Nestes é possível escutar como, num momento, é a voz que parece seguir as teclas e noutro são já as teclas que procuram moldar-se à voz (em "Maria Lisboa" o original "vende sonhos e maresia" cede lugar, em escassos minutos, ao mais cantável "vende sonho e maresia"). Ao ouvir estes ensaios, percebe-se melhor o que queriam dizer os guitarristas com o "vamos às óperas"... Como escreveu David Mourão-Ferreira no PÚBLICO-Magazine, por ocasião da morte do músico (em Paris, a 29 de Março de 1990, vítima de crise cardíaca), Alain "foi o primeiro a intuir, e a um nível muito profundo, a fundamental coexistência, na personalidade de Amália, do popular e do culto, do espontâneo e do vigiado, do grácil e do austero, do familiar e do estranho - de tudo, em suma, o que a nimba de génio."

David Ferreira, filho do poeta e responsável pela EMI-VC, disse há dias que a presente reedição representa "uma janela aberta sobre o processo criativo destes fados", num disco que "desafiou a história" e que, mais do que um disco, "foi uma conspiração". Como uma conspiração não se faz sem conspiradores, aos nomes já citados é preciso acrescentar os de Rui Valentim de Carvalho, editor da VC à data (Amália, que o conheceu pela primeira vez quando ele foi a sua casa arranjar um rádio, porque ele arranjava rádios antes de se embrenhar na música, chamava-lhe o "quarto fadista" do disco) e o do técnico de som Hugo Ribeiro. A reedição, cuja história se relata nos libretos dos CD, em textos de David Ferreira, Jorge Mourinha e Rui Vieira Nery, contou com outras ajudas. Como as de Bruno de Almeida e Ruben de Carvalho, cuja preparação de uma biografia de Alain Oulman ajudou nalgumas descobertas.

Década de ouro

Mas se a revolução se deu em 1962, deixou sementes para toda a década de 60. Que foi a década de ouro de Amália, então no auge das suas potencialidades vocais. Logo em 1965 surge o LP "Fado Português", onde Oulman volta a musicar Camões ("Erros meus") e aplica a sua criatividade em José Régio e Alexandre O'Neil. Oulman é expulso de Portugal em 1966 pela PIDE, sob a acusação de ter cooperado com uma organização comunista (a FAP, dissidência maoista do PCP), mas não deixa de manter contactos com Amália. Nos dois encontros gravados em 1968 com figuras internacionais (o saxofonista Don Byas e o poeta Vinicius de Moraes), a cantora volta ao reportório de "Busto", retomando "Povo que lavas no rio", "Abandono" e "Estranha forma de vida". Esta última, com música de Alfredo Marceneiro, tem letra da própria Amália - que, apesar dos muitos poetas que cantou, ainda se cantou mais a si própria: 30 canções do seu reportório são de sua autoria, contra 20 do segundo autor mais cantado, David Mourão-Ferreira, e 19 do terceiro, Linhares Barbosa.

Já Oulman é o músico com mais canções registadas na voz de Amália: 47, contra 20 de Frederico Valério ou 16 de Raul Ferrão. A prová-lo está a última grande gravação de Amália nos anos 60, o soberbo "Com Que Voz", que só viria a ser editado em 1970. Doze temas, todos eles musicados por Oulman, e de novo a ronda dos poetas: Camões, David, Homem de Mello, O'Neill, mas também Manuel Alegre, Ary dos Santos ou a poetisa brasileira Cecília Meireles. Edições retardadas tiveram também "Amália e Vinicius" (1970) ou "Encontro: Amália Rodrigues & Don Byas" (1973). O "lastro" natural de "Busto" acabou assim por se ver espalhado pela década seguinte à que o viu nascer, em poucas mas animadas sessões nocturnas no Teatro Taborda, de boas condições acústicas mas ameaçado pela vizinhança dos eléctricos da Carris.

Sessões nocturnas pelo sossego, pela acalmia do bulício da cidade, mas também pela génese do fado. "Há uma ligação muito estreita entre o fado e a noite", diz David Mourão-Ferreira na entrevista que a actual reedição (totalmente remasterizada a 24 bits) permite ouvir. E Amália responde: "Eu tenho impressão que fecho os olhos para ser mais noite". Marceneiro, quando cedeu pela primeira vez à "pouca vergonha" de gravar fados, vendou os olhos com o lenço que trazia ao pescoço. Foi no mesmo palco, no Teatro Taborda, dois anos antes. A noite, real ou imaginada, abraçou-os a ambos. Para que possamos, hoje, fruir da luz que emana desse abraço.

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