Advocacia e preconceito

1. No princípio, o modelo do advogado era o do profissional liberal, que abria escritório e trabalhava sozinho. Acreditava-se que era independente e imune a quaisquer pressões, não carecia de publicidade nem de angariação de clientela, era probo e impoluto. Conhecia todos os ramos do direito, fazia-se à barra, minutava contratos, prestava consulta (com ou sem avença). Vivia num quadro de concorrência perfeita, habitado por umas centenas de profissionais iguais a ele, segundo o paradigma liberal. Apesar de imerso no mundo, jurava-se que, por reflexo mecânico, era independente e livre. Pereceu a idade do ouro e a seguir ao 25 de Abril aceitou-se, com rebuço, a criação de sociedades de advogados. Para muitos, as sociedades não passavam de "supermercados do direito", que minavam os fundamentos éticos do múnus profissional. A colaboração com colegas interessados no máximo lucro perturbava a independência, a fusão de clientelas gerava conflitos de interesse, o peso dos custos fixos forçava medidas ínvias de publicidade e angariação. O tempo passou e impôs-se. Perante os grandes clientes, é o advogado isolado quem agora não dispõe de independência. Perante a especialização profissional, não é possível exercer a advocacia sem uma estreita cooperação. Entretanto, as empresas desataram a recrutar juristas para trabalho interno, assalariados e dependentes como um vulgar trabalhador. Raras vezes vão a tribunal mas, à parte isso, desenvolvem todas as funções que cabem ao advogado típico. Todavia, recebem instruções do patrão, subordinam-se à estratégia empresarial e vivem de um rendimento fixo. Dispõem daquilo a que, com eufemismo, se chama a "independência técnica" e que não é senão a simples competência profissional. Quando a litigiosidade atinge níveis relevantes, a empresa cria uma secção de contencioso e emprega advogados de barra (que, apesar da toga, recebem, como os outros, as ordens e o salário do patrão). Estes trabalhadores por conta de outrem vivem num limbo profissional: ninguém sabe (nem eles) se são advogados.De há muito que o jurista coabita na função pública. Zeloso e respeitado, tudo faz para peregrinar na cadeia hierárquica em busca da almejada "letra". Os que não são advogados fazem consulta, preparam decisões e, em certos casos, podem representar o ente público em tribunal. Os que são advogados têm um regime diferente, mas geralmente acumulam com um modesto escritório (mesmo defronte do edifício público) para onde se retiram depois de marcar o ponto. Embora sujeitos às constrições da hierarquia e aos imperativos da razão de Estado, tomam-se por independentes (tecnicamente, é claro). Desde cedo que as organizações profissionais - ordens, sindicatos, associações patronais e empresariais - entenderam que lhes competia o aconselhamento jurídico dos membros. A intenção era a de cobrir apenas o leque de assuntos relacionados com o fim da organização. Mas a cultura lusitana do "já agora" - "já agora, podia também dizer-me..." - fez expandir o negócio e hoje é comum ter consulta jurídica sortida e gratuita nestas instituições. Umas vezes, prestada por juristas que são funcionários da casa; outras vezes, prestada por advogados avençados, a cujo escritório se acaba por recorrer de seguida (mas então a pagar). Importaram-se depois as empresas de auditoria, com os seus exércitos de jovens economistas, fiscalistas e juristas. Pela natureza das coisas, a actividade de auditoria não pode fazer-se sem um componente jurídico. O mesmo se passa com gabinetes ligados ao investimento, às falências, à mediação imobiliária ou à arquitectura. Por arrasto, estas sociedades acabam por prestar uma caterva de serviços típicos da advocacia numa lógica multidisciplinar de complementaridade. No limiar da ilegalidade, sem estes juristas, o conselho jurídico ficaria (como tantas vezes fica) na mão de simples leigos. As sociedades de advogados deixaram já de ser a formalização jurídica da amizade de colegas de curso, que partilhavam a secretária e a sala de espera. No processo de crescimento, os sócios começaram a recrutar outros juristas, a quem não dão (mas prometem vir a dar) o estatuto de sócios. A multiplicação de sociedades e o recurso em massa a este tipo de mão-de-obra encetou mesmo um curioso fenómeno de "proletarização" da advocacia. Tais colaboradores são, de facto, trabalhadores dependentes, que cumprem as instruções dos sócios e auferem uma retribuição (a "recibo verde"). 2. Não será necessário ser mais exaustivo para demonstrar que ruiu por completo o paradigma liberal da advocacia. Uma grande parte dos actos que integram o conceito de advocacia são hoje prestados de modo muito diferenciado e, por via de regra, bem longe da compreensão tradicional da independência. Perante a dinâmica da mudança, há quem queira pôr a cabeça na areia e rasgue as vestes, clamando por uma guerra acrítica à "procuradoria ilícita". Mas esta noção - tal como o restante regime de exercício da advocacia - foi construída à sombra da ilusão liberal. Talvez fosse mais útil começar por uma reforma global e progressista da profissão. Uma reforma que não tenha medo de criar diversas categorias profissionais (advogado, jurista de empresa, etc.), de admitir e regular o exercício subordinado, de diferenciar os advogados sócios e não sócios de sociedades (acautelando a situação destes), de franquear o caminho às sociedades multidisciplinares. De outro modo, tudo continuará na mesma, com a agravante de a Ordem não exercer qualquer presa ou controlo sobre uma fatia substancial dos actos de advocacia. Sem uma reforma global e com uma tensão persecutória, o risco que se corre é o de sempre em Portugal: uma lei cega à realidade, pouco cumprida, celebrada com a punição ocasional de um infractor que, em função das circunstâncias, acabará convertido em bode expiatório ou, mais piamente, em cordeiro pascal.

Sugerir correcção