"Eu teria dado o Nobel também a Lobo Antunes"

E se, em vez de ter morrido num desastre de automóvel, o poeta Roy Campbell tivesse chegado a traduzir "Os Lusíadas"? E se "o imperador da literatura" anglo-saxónica Ezra Pound não tivesse desdenhado de Camões? E se Eça de Queirós não tivesse sido publicitado como "o Dickens e o Balzac que não era"? Foi com estas interrogações que George Steiner - a par de Harold Bloom, um dos mais influentes pensadores da cultura contemporânea - construiu a sua tese sobre os "acidentes" na (má) fortuna da literatura portuguesa em países de língua inglesa. Mesmo depois da "explosão" de Pessoa, sustentou Steiner, o "milagre" só aconteceu com a atribuição a José Saramago do Nobel da Literatura - que, aliás, na opinião do orador, deveria ter sido partilhado com António Lobo Antunes. Diante de Steiner - na plateia (lotada) do auditório da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), anteontem, ao final da tarde - estava o próprio José Saramago. Entre os presentes, refiram-se ainda Teresa Patrício Gouveia, Agustina Bessa-Luís, Carlos Reis, Maria João Seixas, Marçal Grilo, Eugénio Lisboa ou José Luís Peixoto, além de Vasco Graça Moura, a quem coube apresentar Steiner.Graça Moura falou da "pertença à Europa, com a sua herança grega, latina, judaica" como um dos elementos centrais no pensamento de Steiner - nascido em 1929, numa família vienense judaica, e educado em Paris, Nova Iorque, Yale, Chicago e Oxford. Convocando "todos os textos do mundo", num diálogo "entre a eternidade e o tempo", e reflectindo como poucos sobre o "corpo-a-corpo" que é a tradução, Steiner, lembrou Graça Moura, define-se a si próprio como "mestre de leitura".Assim introduzido, o convidado subiu ao palco: "Estou tão envergonhado de não vos poder falar na vossa orgulhosa, orgulhosa língua", disse, a abrir, em inglês. Com a ajuda de um rascunho para as citações, o improviso que se seguiu durou cerca de uma hora.Começou pela ausência de impacto das primeiras traduções dos "Lusíadas", desde 1655, e deteve-se na época vitoriana: "O império britânico estava fascinado pela navegação portuguesa. E os britânicos leram Camões como um modelo para a expansão." O primeiro grande "acidente" dá-se já no século XX e, segundo Steiner, é a prova de como "a teoria literária é um disparate arrogante", porque "o que acontece na literatura são momentos de talento imprevisível, intuição, descobertas acidentais, boa e má sorte."Trata-se de um acidente literal: "Roy Campbell estava a trabalhar numa antologia de poesia portuguesa e anunciou que ia traduzir 'Os Lusíadas'. Morre num estúpido acidente de automóvel em Portugal. Ele teria feito uma enorme diferença." Volta atrás (1843) para lembrar um poema de Elisabeth Barret Browning que faz referência a Camões. Certifica que Emily Dickinson o leu. Passa a Edgar Allan Poe sem tanta certeza - talvez, talvez Poe tenha lido Camões, há referências ao canto VII em dois dos seus textos. Quanto a Herman Melville, é seguro: "Melville ficou muito influenciado e escreverá dois sonetos dedicados a Camões... mas, um dos seus sonetos só tem 13 linhas..." A plateia ri-se e Steiner prossegue: "Parece trivial, mas não é. Alguma coisa está sempre um bocadinho 'à côté'".Outro exemplo desta tese steineriana, em pleno romantismo: "Quando Blake faz uma série de desenhos das cabeças dos poetas, temos um Camões cego do lado errado..." Segue-se "um grande 'crash'". "Ezra Pound foi o imperador da literatura, para gerações. Tinha o fantástico poder de ditar como ler e o quê. Em 1910 publica 'O Espírito do Romance', enormemente influente, e muito anti-Camões. O que é Camões para Pound? Não uma força, mas um sintoma - julgamento terrível. Às vezes é poesia, diz Pound, mas quase sempre é 'pompa vazia'... lembramo-nos do que Pound fez por escritores como Flaubert, e perguntamos: 'E se? E se Pound tivesse escrito um capítulo entusiástico sobre Camões?". A partir do "crash", afirma Steiner, as referências aos "Lusíadas" serão isoladas e marginais - por exemplo, Elisabeth Bishop.Quanto a Eça, segundo Steiner, foi prejudicado pela publicidade comparativa: "Não era Balzac e Dickens, era ele próprio, com a sua grandeza de província. E foi um enorme desapontamento."Depois, veio "o momento da explosão", Fernando Pessoa. Steiner começou por colocá-lo na constelação de Wilde, Nabokov, Borges, Beckett, Milosz, "mestres da invenção poliglota", lembrando que Pessoa se estreou em inglês - e abriu um parêntesis pessoal: "A minha própria mãe começava uma frase numa língua e acabava-a duas ou três línguas mais tarde. Foi uma grande aprendizagem para mim."Recordou traduções parciais de Pessoa nos anos 40 e 50, e saltou para 1994, com uma vénia ao seu rival: "O influente crítico Harold Bloom disse que Pessoa devia estar no seu 'Canône'. E a revista 'Time' perguntou: 'Quem é Pessoa? Típico das obscuridades académicas de Bloom..."No mundo anglo-saxão, lamentou Steiner, ainda não há nada como a edição da Pleiáde francesa, mas apesar de tudo "uma indústria Pessoa está também a caminho". O episódio seguinte veio a constituir-se, ele próprio, como um bocadinho ao lado. Steiner lembrou que em 2001 saiu uma tradução de "O Livro do Desassossego". "Uma boa crítica: minha. Disse que era um livro importante, embora difícil, que não era preciso lê-lo todo, mas que fazia parte da constelação de grandes livros de cidades, a Trieste de Svevo, a Dublin de Joyce, a Viena de Musil. Embora eu não tenha a influência ou o estatuto de Bloom, houve quem dissesse, em Inglaterra: 'típico das invenções continentais de Steiner'." Gargalhada na sala. "Ninguém acreditou em mim, correu muito mal, os editores perderam muito dinheiro e agora não tocam em Pessoa. Não estou certo de que tenha sido o melhor livro para introduzir Pessoa."Richard Zenith, tradutor da edição citada, estava presente, e no fim comunicou a Steiner que, além da sua crítica, mais cinco ou seis, positivas, tinham sido publicadas, que o volume esgotara em seis meses, e que a edição de bolso saíra a semana passada. Na ponta final da conferência, "o milagre" do Nobel. Steiner falou de "Viagem a Portugal" como um "livro encantador" e citou Borges e Nabokov a propósito de "O Ano da Morte de Ricardo Reis".Fez uma digressão criativa, contando que Beckett foi buscar o nome Godot a um ciclista, Armand Godot, que chegava sempre atrasado a uma corrida de que o escritor era aficcionado: "A multidão gritava sempre: 'À espera de Godot, à espera de Godot..."Passou a Lobo Antunes, que defeniu convictamente como "um romancista esmagador". Nomeou "Memória de Elefante, "Auto dos Danados", "A Morte de Carlos Gardel" e, "acima de todos", "Manuel dos Inquisidores" - "Desde o 'Nostromo' de Conrad que não tínhamos ficção política tão poderosa."Finalmente, a fechar, "um pequeno risco". Confessou que se pertencesse ao Comité Nobel teria defendido a partilha do prémio entre Saramago e Lobo Antunes: "Diria a Saramago: não se zangue, vamos dar aos dois. O que posso dizer é que uma literatura é muito feliz quando tem este problema."E ovação de pé.

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