Savimbi, O homem que podia ter sido Presidente

O anúncio da morte de Jonas Savimbi, na noite de 22 de Fevereiro último, precipitou a saída do livro de João Paulo Guerra, em preparação há mais de três anos, mas até então, sem data marcada de publicação. "Savimbi, Vida e Morte" começou por ser "Savimbi, A Guerra Infinita", e a ideia de que só o desaparecimento do líder abriria a via para a paz está presente ao longo de todo o livro, publicado, por "uma feliz coincidência", no dia da assinatura do cessar-fogo em Angola, 4 de Abril. Depois de uma primeira e segunda edições de quatro mil e dois mil exemplares, respectivamente, está prevista uma edição "actualizada", com dados entretanto recolhidos pelo autor - essencialmente correspondência pessoal e relativa aos negócios da UNITA - reveladores de uma faceta marcante da personalidade de Savimbi: uma desconfiança constante mesmo nas relações mais próximas que mantinha com o núcleo de homens que se pensava serem da sua confiança. Na actual edição, através da publicação de documentos e depoimentos, alguns deles inéditos, o relato jornalístico de João Paulo Guerra pretende reconstituir a vida do fundador da UNITA, numa perspectiva que acaba por corresponder em muito à versão apresentada e alimentada ao longo dos anos pelo regime de Luanda.

P - Teria sido possível publicar este livro estando Savimbi vivo? Evidentemente que sim. O projecto era esse, tal e qual na forma em que ele está. O título é que mudou de "Savimbi, Guerra Infinita" para "Savimbi, Vida e Morte". Foi o desenlace da história, com a morte dele, que precipitou a publicação. P - Mas é um livro extremamente controverso na forma como sugere uma responsabilização exclusiva de Savimbi pela guerra em Angola. Houve algumas reacções negativas?Ainda bem que é um livro controverso. Assumidamente. Não tive nenhuma preocupação de gerar consenso. Até agora, não houve reacções nenhumas da UNITA. Provavelmente, se o livro tivesse saído há um ano, teria sido muito mais controverso. Savimbi tinha uma influência muito grande sobre as pessoas, desde aqueles que o idolatravam por lhe reconhecerem determinadas qualidades até aos que viviam constrangidos naquele mundo opaco de poder exercido, muitas vezes, através da coacção. Logo a seguir à morte de Savimbi, tornou-se claro que a oportunidade da paz criou nos angolanos um certo consenso. O que é que mudou? Savimbi desapareceu, ao fim de muitos anos de negociações sempre adiadas e de acordos falhados. Quem vai beneficiar mais com o desaparecimento de Savimbi é a própria UNITA. O movimento estava condenado a ser considerado - a nível nacional e internacional - não como um partido político mas como um Exército armado, incapaz de se enquadrar numa sociedade civil, democrática, em paz. O desaparecimento desta liderança bélica pode criar as condições para que a UNITA se revele de facto como um partido, com os seus quadros e os seus projectos.P - Defende, no livro, que a única motivação para a actuação de Savimbi foi a sua ambição pelo poder. Não há outras razões que justifiquem a intervenção da UNITA na guerra?Durante o período colonial até à independência, há motivos para qualquer angolano se organizar e combater pela independência do seu país. Com a presença de militares estrangeiros em Angola, cubanos e soviéticos, há razões para que angolanos se organizem e lutem pelo seu país. Não havendo democracia, há motivos para que os angolanos se organizem e combatam pelo seu país. Tudo isto foi sendo ultrapassado, e chega uma altura em que a única coisa que falta é o poder. É o único objectivo que não é nunca declarado. Obviamente.P - Então Savimbi nunca quis a paz? O certo é que o único acordo de paz que funcionou em Angola, foi o acordo em que a UNITA ficou excluída: o Acordo de Nova Iorque para a retirada dos cubanos de Angola, e para a retirada dos sul-africanos da Namíbia. Eram interesses muito antagónicos os que se jogavam nestas conversações quadripartidas entre os Estados Unidos, Angola, Cuba e a África do Sul. Eram choques violentíssimos que se enfrentavam e, no entanto, funcionou e ninguém tem dúvidas em como funcionou. Depois, Bicesse falhou, Lusaca falhou, as eleições falharam e assim sucessivamente. Nos períodos após a assinatura desses acordos, houve momentos de acalmia, mas que eram normalmente utilizados por Savimbi para se reequipar, se rearmar, se reorganizar, retomar posições e voltar à guerra.P - Um livro sobre Savimbi é necessariamente um livro sobre Angola. O livro é dirigido a que tipo de público? As pessoas interessam-se assim tanto por Angola? Há muitas pessoas que se interessam por Angola, nomeadamente aqui em Portugal. Há muitas ligações de gente que viveu ou nasceu lá, pessoas que consideram aquilo ainda um pouco a sua pátria. A África exerce um grande fascínio sobre as pessoas. Quem vive em África, dificilmente se esquece e se resigna a não viver lá. Há muita gente com ligações familiares e há uma grande ligação afectiva com Angola. Lembro-me de, em 1976, haver milhares de pessoas que voltaram de Angola, muitas delas em situações dramáticas, gente muito ferida, espoliada, que perdeu tudo. Deu-se o Campeonato Mundial de hóquei em patins, no Pavilhão dos Desportos, e Angola era uma das equipas na competição. E apesar do contexto, o primeiro jogo foi impressionante. O pavilhão estava cheio de portugueses a torcerem pela equipa angolana. Foi um sinal de que há, de facto, uma grande afectividade. O tipo de colonização de Angola, de extractos sociais mais baixos, proporcionou, a meu ver, relações de um grande afecto. E isso mantém-se. Também há grandes manifestações de interesse por Angola decorrentes de um saudosismo colonialista. Também há disso. P - Foi difícil escrever este livro? P - Mas foi fácil compreender e entrar nos meandros da realidade angolana, feita de histórias que nem sempre são aquilo que parecem à primeira vista? Muita da documentação foi-me fornecida por pessoas da UNITA, que estavam em dissidência com a linha oficial do movimento, ou pessoalmente com o Savimbi; pessoas que, na altura, se consideravam perseguidas, acossadas. Mesmo na Europa e em Portugal havia muita gente que tinha algum receio.P - Nunca sentiu que podia estar a ser utilizado no interesse dessas pessoas? Sou bastante cauteloso. Os factos e as declarações são atribuídos a pessoas. O resto das informações ou declarações procuro sempre confirmar com outros testemunhos ou documentos. Mas em Angola a situação tem sido, de facto, sempre muito complexa. É um país riquíssimo e, como tal, desperta imensos apetites. A própria guerra foi sempre fonte de grandes interesses de todos os lados. P - A forma como esse material foi escolhido, e outro eventualmente omitido, reforça a tendência para uma "diabolização" de Jonas Savimbi. Foi essa a sua intenção?O objectivo deste livro era apresentar factos para as pessoas tirarem conclusões, que podem ser variadas. Agora, deste somatório de factos, decorre muito provavelmente essa conclusão que Savimbi fez uma carreira política e militar alimentada por uma grande ambição pessoal, e que para tentar realizar essa ambição fez as alianças mais inesperadas: combateu o colonialismo, mas aliou-se com tropas coloniais, através de acordos com os generais portugueses e com a PIDE; e para combater a presença soviética em Angola, aliou-se à África do Sul do "apartheid". É um percurso extremamente sinuoso, que, no meu entender, se destina apenas a procurar realizar uma ambição de poder. Aliás, há neste momento uma opinião generalizada em como ele era de facto um estorvo a qualquer acordo sério, eficaz e que se viesse a cumprir, de paz para Angola. Eu não vi ninguém chorar a morte de Jonas Savimbi. P - Se assim é, por que é que nunca houve consenso, a nível internacional, para qualificar Savimbi de terrorista ou criminoso de guerra, como era desejo do Governo de Luanda?Há sempre interesses em jogo. Mesmo as democracias são muito pragmáticas, e jogam nos vários tabuleiros da mesma balança, porque nunca sabem o que pode vir a ser a evolução da situação. Não se sabia se a UNITA podia ganhar a guerra. Era perfeitamente admissível que houvesse uma mudança completa da situação no terreno em Angola. Quem controla dois terços do território e realiza operações militares a 50 quilómetros da capital, como foi o caso da UNITA, pode, a qualquer momento, tomar o poder. Se o desfecho da luta pelo poder nos dois Congos tem sido outro, não sei se o Governo angolano se teria mantido. Depois, há factores decisivos que desequilibram completamente essa balança. Por exemplo, durante muito tempo Savimbi esteve à espera de ver o que davam as eleições nos Estados Unidos, ou em França, que representam os apoios mais sólidos que ele teve. Mas Bill Clinton surgiu com uma equipa que de trás era muito crítica em relação à UNITA e que, uma vez no poder, teve de manter e assumir essas posições. Depois, com os republicanos, o cenário podia ser mais favorável, mas não muito, porque Angola passou a ser o maior fornecedor dos Estados Unidos em petróleo. Há todos esses factores que pesam. Aliás, o apoio dos EUA nunca foi unânime, gerou sempre muitas divergências no seio da Administração norte-americana. Começou por ser uma aposta do secretário de Estado norte-americano, Henri Kissinger, que tinha acabado de perder a guerra do Vietname e precisava de ganhar uma guerra qualquer e apostou no cavalo errado, contra imensas opiniões, até da CIA. Conheci-o mal, durante as negociações no Alvor que conduziram ao acordo para a independência, e posteriormente quando ele veio a Portugal nos anos 80. Acho que é um homem de um certo brilho a falar, a expor as suas ideias. Tinha uma linguagem colorida, pitoresca, uma grande facilidade de expressão e uma certa ironia. Afastando todos os outros aspectos sinistros da convivência com ele, acho que era uma pessoa que podia exercer um certo fascínio sobre as outras pessoas. Tinha essas qualidades, sim. P - Refere, no início do livro, a intenção de quebrar o "mito" em volta de Savimbi. Sim. Os documentos que eu cito, logo no início do livro, de militares portugueses, mesmo anteriores à formação da UNITA, diziam que a luta dele era uma luta pelo poder, reportando-se ainda àquela primeira fase em que ele é da UPA mas anda a negociar com o MPLA, depois é da FNLA, sem aceitar qualquer acordo neste movimento, onde a liderança é de Holden Roberto. Por outro lado, não aceita sugestões para ser integrado no MPLA com a promessa de eventualmente chegar a uma vice-presidência. É manifesta essa ambição pessoal dele. P - Acha que é nesse mesmo espírito que, mais tarde, Savimbi não aceita o cargo de vice-presidente que lhe era atribuído no Protocolo de Lusaca?Provavelmente. Há aqui uma situação incrível, porque Savimbi podia ser hoje Presidente de Angola. Se ele tem aceite a realização da segunda volta das presidenciais, em 1992, nada nos garante que não tivesse ganho, ou mesmo, se a tivesse perdido, nada nos diz que num novo voto, que entretanto já teria forçosamente de se ter realizado, que ele não o tivesse ganho. Seguindo uma via democrática em Angola, ele podia ter sido Presidente. Aquela ambição de poder veio a ser-lhe fatal. Eu nunca admiti ver o Savimbi como vice-presidente em Angola, com aquelas benesses. Mas ele admitiu e assinou acordos. Depois voltou atrás.Acho que sim. Até pelo retrato que faço dele. Acho que ele ia, de qualquer modo, lutar até ao fim. Eventualmente aceitar mais um ou outro acordo e depois procurar dar-lhe a volta, ganhar tempo, rearmar-se, reequipar-se, reabastecer-se, e continuar indefinidamente a guerra. O título do livro era para ser "A Guerra Infinita". P - Diz que pretende repor a verdade dos factos. Não é difícil haver uma única verdade nisto? Como em tudo. P - Mas especialmente sobre esta figura, ainda envolta num grande mistério? Acho que a distância histórica obviamente permitirá esclarecer muitas mais coisas sobre Savimbi. Muitos dos dirigentes da UNITA que privavam com ele vão, mais tarde ou mais cedo, falar de coisas que ainda permanecem opacas mas que um dia se irão certamente saber."Savimbi exerce um grande fascínio sobre as pessoas." "Não vi ninguém chorar a morte de Savimbi.""Quem vai beneficiar mais com a morte de Savimbi é a própria UNITA.""A distância histórica permitirá esclarecer muitas mais coisas sobre Savimbi."

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