Como abortou nos anos 70 o projecto de uma Federação entre Portugal, Cabo Verde e Angola

No meu artigo publicado neste jornal em 06/08/2001, e intitulado "Dispa-se o rei! (2), referi que o que serviu de base à minha actuação pós 25 de Abril de 1974, foi a minha convicção de que:a) Ninguém conseguiria impedir a realização de eleições.b) Não era possível a tomada do poder pelo PCP.c) Uma Federação de Estados/Nações, incluindo Angola, Portugal e Cabo Verde, era fundamental para Portugal e Cabo Verde e muito importante para Angola.d) Em Angola não era possível a instauração de um Estado Socialista.Nesse artigo expus as razões das minhas convicções referidas em a) e b).Passado mais um aniversário do 25 de Abril e ultrapassados os tempos conturbados dos processos eleitorais que vivemos, resolvi apresentar as razões das minhas convicções referidas em c) e d), e revelar alguns factos esclarecedores da verdade e que considero de interesse histórico.Porquê uma Federação de Estados englobando Angola, Portugal e Cabo Verde?Entre estes três Estados existia um invulgar espírito de comunhão de sentimentos, de fraternidade, de interpenetração e de complementaridade cultural, social e étnica, coisa que não se verificava entre outros territórios, com eventual excepção relativamente a São Tomé e Príncipe cuja integração naquela Federação não seria de excluir.É um caso praticamente ímpar no mundo. Um português não se sentia estrangeiro em Angola tal como um angolano não se sentia estrangeiro em Portugal, e um cabo-verdiano não se sentia estrangeiro nem em Angola nem em Portugal, até porque, em última análise, os cabo-verdianos são filhos de Portugal e de Angola.Portugal, para além do profundo conhecimento que tinha de Angola, dispunha da tecnologia necessária ao grande arranque do desenvolvimento em todo o espaço integrante da Federação, apoiado nas imensas potencialidades de Angola. Cabo Verde, situado no meio do Atlântico Sul constituiria um importante elo de ligação na rota Europa/África.A Europa teria todo o interesse em que Portugal para ela entrasse ligado a Angola e Cabo Verde, pois que, Angola seria a porta da Europa na África Austral, e Cabo Verde estaria para o Atlântico Sul como os Açores estão para o Atlântico Norte. Portugal, isoladamente, não pode competir na Europa. Ainda que Portugal tivesse um desenvolvimento tecnológico, industrial e agrícola equiparado ao da generalidade dos países europeus, que lhe permitisse produzir em idênticas condições, (e não tem), sempre os produtos portugueses chegariam ao coração do mercado europeu em condições desvantajosas na medida em que o seu preço seria agravado pelos custos do transporte, uma vez que se situa fisicamente no extremo da Europa. Aliás, não foi por acaso que, desde há mais de cinco séculos, Portugal se vira empurrado para a tal "vocação marítima" invocada como causa dos descobrimentos.Portugal, para "chegar à Europa", é forçado a fazê-lo através da Espanha. Esse problema, que inicialmente se colocaria essencialmente no plano físico, rapidamente passaria a colocar-se no plano económico com reflexos cada vez maiores no plano político.Portugal, para "atingir a Europa", tendo a grande Espanha de permeio, é como um rio que, tentar alcançar o oceano distante, vê esvaírem-se as suas águas no percurso, antes de conseguir desaguar. Os fortes interesses que se moviam em oposição a um tal projecto, e que não eram os verdadeiros interesses de Portugal, levaram ao desencadeamento da feroz perseguição que contra mim foi desencadeada no 25 de Novembro de 1975, alicerçada na tenebrosa campanha de calúnias relativa ao Dia do Salário.Em consequência dessa perseguição fui forçado a passar à clandestinidade e a sair de Portugal, como ficou inequivocamente provado em Tribunal.Sempre com o objectivo de contribuir para que fosse posto em marcha aquele projecto, fui para Angola e, ali, durante o meu exílio, falei com os responsáveis angolanos, nesse sentido, e foi curioso verificar que todos os responsáveis de Angola, qualquer que fosse a sua tendência, apoiavam um desenvolvimento comum luso-angolano, baseado na igualdade de direitos e reciprocidade de interesses.O actual Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, foi designado pelo então Presidente Agostinho Neto, com o apoio da direcção do MPLA, para, conjuntamente comigo, trabalharmos na elaboração dos dossiers de cooperação, em todos os sectores, e que os nossos países entrariam em pé de igualdade.Paralelamente, e enquanto preparávamos os dossiers, tentou-se pôr de imediato em marcha o início de uma efectiva cooperação.No sector da indústria, promoveu-se o desenvolvimento de um polo, inicialmente através da "Tramagal", e conseguiu-se ainda impedir que as Berliers portuguesas fossem vendidas a Angola, pela França, como estava a ser preparado, e cujo transporte iria ser feito pela Marinha Mercante grega.As berliers acabaram por ser vendidas a Angola, directamente por Portugal, e foram transportadas pela Marinha Mercante portuguesa, apesar das tremendas manobras de boicote desenvolvidas em Portugal, que tiveram de ser vencidas, tendo o então Presidente Português Ramalho Eanes contribuído para a solução, pelo que não quero deixar de referir essa sua meritória actuação.O então Presidente Agostinho Neto referira-me que tinham necessidade de 240 professores. Prometi-lhe que iria fazer todos os esforços para que o Governo Português enviasse os professores. Solicitei que os responsáveis portugueses enviassem os professores.Apesar das minhas insistências, e apesar de, para além da desejável cooperação, se tratar da expansão da nossa língua e da nossa cultura, nunca foi satisfeita a minha solicitação e Angola teve de socorrer-se de professores de outras nacionalidades. Isto, quando a generalidade dos países, desde os Estados Unidos até à URSS, tudo faziam para aumentarem a sua influência em Angola.O boicote dos responsáveis portugueses estendeu-se a todos os outros domínios, nomeadamente, da aviação civil, da hotelaria, da agricultura, das pescas, do petróleo, em que o próprio Primeiro Ministro Lopo do Nascimento me disse que necessitavam de uma decisão rápida quanto ao petróleo, pois tinham os depósitos a abarrotar.Enquanto os outros países não se poupavam a esforços e pretendiam, a todo o custo, fincar o pé em Angola.Quando os dossiers, elaborados por mim e por José Eduardo dos Santos, ficaram concluídos, em princípios de 1977, solicitei aos responsáveis portugueses que enviassem um emissário para se encontrar comigo. Depois da sua concordância, defini a Suécia como o país onde deveria realizar-se o encontro, porquanto o secretário do Primeiro Ministro Olof Palme, que se encontrava, então, em Luanda, me informara que o Governo Sueco garantia o suporte para a minha estada na Suécia.O então Presidente Agostinho Neto determinou que o Ministro Angolano dos negócios estrangeiros, Paulo Jorge, me desse um passaporte diplomático de Angola, e que me fosse custeada a viagem.Mais tarde, e depois de combinada a data e o local do encontro, os responsáveis portugueses enviaram-me um emissário (Tenente Coronel Vicente) a Estocolmo.Encontrámo-nos no quarto do hotel onde me instalei.Aí, mostrei-lhe os dossiers, disse-lhe que da parte angolana estava tudo pronto para avançarmos e que eu regressaria a Luanda, onde ficaria a aguardar que me contactassem. Regressei a Angola, e nunca mais fui contactado pelos responsáveis portugueses, que, com uma tal atitude, me criaram uma situação falsa e delicada perante os responsáveis angolanos.Paralelamente, fora desenvolvida uma tremenda campanha de intrigas tendentes à criação, em Luanda, de um clima de hostilidade contra mim, intrigas essas que tinham como destinatários os principais responsáveis angolanos, das várias tendências, como facilmente se constata, nomeadamente nos artigos então publicados por alguma imprensa, visando, no mínimo, a minha saída de Angola, e que, no aproveitamento do 27 de Maio de 1977, viria a culminar com a minha prisão em Luanda e à minha saída de Angola.Essa campanha, que passou por algumas Chancelarias a quem não interessava uma estreita cooperação entre Portugal e Angola, contou até com a participação directa de Sérgio Vieira, responsável moçambicano, que o fez à revelia do próprio presidente Samora Machel e dos órgãos dirigentes da Frelimo, tendo uma tal campanha tido coordenação em Lisboa. Em matéria de imprensa, o "Nouvele Observateur" tomava a dianteira em Paris e os seus artigos eram, de forma concertada, traduzidos e publicados pelo semanário "O Jornal", em Lisboa.Aliás, concertadamente, segundo a mesma orientação e com idênticos objectivos de intriga junto das autoridades angolanas, incluindo o próprio Presidente Agostinho Neto, apareceram na casa onde eu residia em Luanda, para me entrevistar, René Backman do "Nouvelle Observateur" e Manuel Bessa Múrias de "O Jornal".Em seguida, o "Nouvelle Observateur" publicou, em Paris, artigos intriguistas contendo afirmações que eu nunca fiz, que, complementarmente, foram publicados em Lisboa por "O Jornal".Enquanto que países terceiros, na defesa dos seus interesses, quantas vezes ilegítimos, se esforçavam para me verem afastado de Luanda, com intuito de obstruírem o desenvolvimento de uma estreita cooperação entre Angola e Portugal, os responsáveis portugueses de então destruíam uma oportunidade histórica, única, para o desenvolvimento daquela cooperação, fundamental para Portugal e Cabo Verde, e muito importante para Angola, sendo que, a comunidade dos três países poderia ter voz activa na Europa essencialmente através de Portugal e na África Austral essencialmente através de Angola, e afirmar-se no mundo. Os meus adversários conseguiram os seus objectivos, mas têm sérias responsabilidades nas conhecidas desgraças que os angolanos têm sido forçados a suportar, e no futuro de Portugal.A minha afirmação de que em Angola não era possível a instauração de um Estado Socialista baseia-se no seguinte:Desde logo, porque o primeiro grande objectivo dos povos das colónias que ascendem à independência é ocupar o lugar dos colonos, e os colonos nunca foram socialistas.Em Angola, a força política de maior implantação era o MPLA, que, sendo a mais à esquerda, não era um partido, era um Movimento, que, até à independência, nunca teve como suporte a URSS (porque esta não depositava nele a confiança política que pretendia), nem sequer a China. O MPLA sempre navegou nas águas do não alinhamento e a entrada da URSS em Angola por ocasião da independência foi meramente circunstancial.Acresce que não é possível implantar Estados Socialistas em países com sistemas culturais e político-sociais baseados em estruturas ancestrais e onde o tribalismo é ainda uma constante, tal como não é possível instaurar nesses países Estados baseados em modelos de democracia do tipo ocidental (europeia/americana), sem que, previamente, passem por períodos de transição mais ou menos longos, com sistemas político-sociais enxertados nas estruturas tradicionais, que evoluam conjuntamente com a evolução educacional e cultural dos respectivos povos.A URSS sempre se "estatelou" politicamente em África, por não ter tomado em devida conta estas realidades históricas da evolução das sociedades tradicionais africanas, havendo agora países ocidentais que estão a fazer o mesmo tentando, anacronicamente, implantar ali cópias dos seus próprios sistemas democráticos. Provavelmente estarão conscientes dessas realidades, e utilizam uma tal actuação política, que rotulam de legítima, como forma de cobertura à sua actuação na defesa de ilegítimos interesses.Para além do que já referi quanto ao ter considerado que uma Federação de Estados englobando Angola, Portugal e Cabo Verde era fundamental para Portugal e para Cabo Verde e muito importante para Angola, acresce que não acredito na eficácia da Europa nos termos em que se encontra estruturada. É que, para além de ser constituída por vários países de línguas, culturas e interesses diferentes, o que dificulta a tomada de decisões, particularmente de decisões firmes em matéria de política externa conjunta, há que ter em conta, que um dos seus mais poderosos elementos - a Inglaterra - se encontra na União Europeia, não para ajudar a construí-la, mas sim para procurar impedir que os seus próprios interesses e os interesses do seu parceiro privilegiado - os EUA - possam ser prejudicados pelos verdadeiros interesses da União Europeia.O caminho certo para Portugal era ter como primeira prioridade, o desenvolvimento com Angola, conjuntamente com Cabo Verde e, eventualmente S.Tomé e Príncipe, isto sem descurar a entrada na União Europeia, que sempre haveria de ter lugar, mas em condições bem diferentes.Coronel Piloto Aviador, ex-membro da Comissão Coordenadora do MFA, ex-membro do Conselho de Estado, ex-Ministro do Trabalho do II, III, IV e V Governos Provisórios.

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