Casa Batlló abre ao público

Salvador é de poucas palavras. O pequeno, de sete anos, está sentado na beira do passeio de pernas cruzadas, sobre as quais repousa um caderno de folhas brancas, preso a uma prancha fina mas resistente. Rabisco daqui, rabisco dali, levanta o pescoço durante uns segundos, semicerra os olhos e volta a concentrar-se no papel. Neste, vão surgindo os traços de uma janela de formas arredondadas. Mas poucas vezes tão perfeitamente arredondadas como Salvador as quer. E vai esborratando, com a borracha que também já foi branca, uma ou outra linha.O que está a desenhar é "a janela da casa do 'señor' Gaudí". A professora, que conta e reconta os cerca de dúzia e meia de pequenos pupilos espalhados pelo passeio que desenham, numa azáfama, um pormenor à sua escolha da fachada da Casa Batlló, chama-o à atenção. Salvador apressa-se a corrigir: "Não, é a casa do 'señor' Batlló, feita pelo 'señor' Gaudí." E ele (Salvador) gostava de desenhar casas assim? Um lento encolher de ombros e um sorriso tímido não desvendam a resposta. E volta à "sua" obra.Apenas uma hora depois da abertura ao público, pela primeira vez na vida, das portas da Casa Batlló, uma pequena multidão praticamente enchia o largo passeio para comprar bilhete ou esperava já na longa fila para entrar. Ao mesmo tempo, bandos de jovens ou de turistas em excursões organizadas paravam, durante alguns minutos, para observar a fachada daquela que é considerada uma das obras-primas do arquitecto catalão Antoni Gaudí - e obrigando Salvador e os colegas a torcerem ainda mais o pescoço para conseguirem ver o modelo.Apesar de estreitamente ligado ao nome de Gaudí, o edifício, construído em 1875, apenas foi reformado pelo arquitecto. Derrubada a fachada, Gaudí ergueu uma nova, como se de um charco cheio de nenúfares coloridos - de um quadro de Monet - em águas ondulantes se tratasse. As formas arredondadas das janelas do primeiro andar e varandas e os inúmeros círculos de cerâmica vidrada brilhando ao sol dão-lhe um ar ainda mais místico.Há quem veja nestas janelas, que rasgam a fachada de um lado ao outro, as asas abertas de um morcego ou as coloridas máscaras carnavalescas que desfilavam pela grande avenida, quem identifique as finas colunas com os ossos da tíbia, e as varandas com caveiras. Gaudí orientou a construção da fachada a partir do passeio, e nem sequer tinha um projecto. Havia apenas um simples desenho e uma maquete de gesso que o próprio moldara à mão.No telhado, Gaudí deu asas bem largas à sua imaginação: é uma explosão de cor, formas geométricas e vegetais, espirais e radiais. No interior, o vestíbulo que dá acesso aos andares superiores é o de uma casa "normal" apesar de ter o dedo de Gaudí, mas é no "hall" privado da casa da família Batlló, no primeiro andar, que se nota a sua presença. A escadaria de madeira parece a espinha dorsal de um animal pré-histórico e o corrimão adapta-se perfeitamente à mão humana, quer se desça ou se suba.Ao cimo da escada surge a sala da chaminé, um pedido especial de José Batlló. A famosa lareira está encaixada numa parede, dentro de um buraco em forma de cogumelo. Toda essa parede é forrada a tijolo refractário, com um banco de cada lado, virados de frente um para o outro. Um deles é maior que o outro, diz-se que um se destinava à dama (o mais largo, para ali caber toda a vestimenta de saias e saiotes) e o outro à sua criada (o mais acanhado). Se se avaliar esta lareira consoante os padrões portugueses, mais poderíamos chamar-lhe braseiro, dado o seu reduzido tamanho.É uma construção inspirada na natureza e por todo o lado se identificam formas florais ou animais. A genialidade de Gaudí mostra-se em pequenos pormenores: a circulação do ar é feita por pequenos rasgos nas portas de madeira, a luz natural entra, aqui e ali, por buracos no tecto, com vidros de várias cores, e os simples puxadores das janelas adaptam-se na perfeição à mão.A sala principal, com a sua gigantesca janela sobre o Passeio de Gràcia, é a divisão onde os jogos de luz dominam. Em dias de sol, as árvores em frente à casa parecem uma extensão da própria sala, de tal modo se conjugam com a madeira das portas e do chão e as cores dos vidros redondos - como se fossem borbulhas - das portadas. O relevo do tecto, em espiral, assemelha-se a um remoinho de água, e é difícil perceber o que Gaudí desenhou primeiro: se o tecto, se as portas que dão acesso às duas pequenas divisões contíguas. No longo corredor que leva a outras divisões da casa, a luz é levemente azulada: uma janela alta virada para o pátio interior, de paredes forradas de azulejos lisos e com relevos, em vários tons de azul.No tecto da sala de jantar, virada para o pátio traseiro, 12 meias bolas dispostas em círculo, com uma menor no centro, lembram um salpico de água, mas há também alguns especialistas que afirmam poder ser uma alusão aos seios femininos. Precisamente em frente à porta de acesso ao pátio, Gaudí colocou duas colunas gémeas pintadas.A saída para o pátio é como um mergulho num tanque repleto de pétalas de todas as cores, e cuja parede é um simples gradeamento de ferro - que prende as pétalas, mas as deixa respirar. Ao fundo, as rodelas de cerâmica formam vasos incrustados na parede, em mais uma paleta de cores. Se no interior as curvas são nas paredes e no tecto, no pátio as ondas estão no chão, cheio de altos e baixos, e coberto por um tapete de milhares de "cacos" de cerâmica.

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