Femi Kuti, a luta continua

Se Fela Kuti, o nigeriano que inventou o afro-beat, tem hoje lugar destacado no panteão das figuras gradas da história da música negra, "Fight to Win", o quarto álbum do seu filho Femi, tem um pé na herança paterna e outro no futuro. Continua a oferecer-se como um panfleto político. A causa é, obviamente, a libertação africana. O meio para aí chegar: a agitação dos corpos.

Femi Kuti é filho de Fela Kuti e esse legado é incontornável. É difícil pensar na música de Femi esquecendo que cresceu a ouvir a música do pai. No entanto, não é menos certo que Femi Kuti tem desenvolvido um percurso sólido que o tem conduzido ao centro dos acontecimentos relevantes para se perceber a música moderna. No seu último álbum, "Fight To Win", agora lançado, o filho de Fela não esquece a herança paterna. Mas também não fica preso a ela. Dir-se-ia que parte dela para percorrer o seu caminho. De Fela a Femi, descubra as diferenças e as semelhanças. A história musical da família Kuti é longa de quase um século. Os registos dizem que o reverendo J. J. Ransome Kuti, no já distante ano de 1914, gravou um disco preenchido com hinos tribais para a etiqueta Zonophone. Fela Ransome Kuti viria a nascer 24 anos mais tarde, filho de uma feminista e de um reitor que desde cedo se impuseram como figuras de proa na luta pela libertação da Nigéria face ao poder colonial britânico. Andaram pela capital do império, quando tentaram fazer de Fela um médico respeitável, mas ele partiu para os EUA onde tomou conhecimento de movimentos políticos afro-centristas, como os Panteras Negras, e da música de artistas como James Brown. Regressou a Lagos, capital da Nigéria, decidido a fazer com que o seu país retornasse às suas genuínas raízes africanas. Desde aí gravou 42 álbuns de originais nos quais fundou um novo género em que o jazz e o funk norte-americanos se fundiam com certas polirritmias africanas. Chamaram-lhe afro-beat.A bem ver, não é mais do que um espécime de world-music capaz de combinar influências da soul, jazz e funk com percussões tribais oriundas da costa oeste africana. Fela Kuti, o seu grande mentor, era personagem altamente carismática e de sobeja intuição política, além de possuir um estrondoso apetite por mulheres. Além da sua vasta obra musical, tornou-se também conhecido pelas longas actuações em que cada tema poderia durar mais de uma hora. Tempo esse que era proveitado para doutrinar as plateias com coloridas prédicas que versavam a corrupção na Nigéria, o que aliás lhe valeu inúmeros problemas com as autoridades locais. Em fundo, ouviam-se as polirritmias do baterista Tony Allen, uma secção de sopros de qualidade jazzística e muitas, muitas coralistas.Fela Kuti, quando jovem, estudou em Londres e foi no seu regresso a Lagos que ousou fundir o funk de James Brown com música intrinsecamente africana. A sua banda passou a chamar-se Africa 70 e o clube onde actuava tomou o nome de The Shrine. Fundou igualmente, com os seus seguidores, uma comuna de nome Kalakuta, pouco tempo depois arrasada pelo exército nigeriano. Apesar do grosso da sua produção musical ter acontecido durante os anos 70, a importância da sua obra musical só chegou à Europa no início da década de 80 com a de King Sunny Adé (rei da juju music) e com a de outros, como Youssou N'Dour. Estava lançada a world-music. Só muito mais tarde, já nos finais da década de 90, o afro-beat regressou, agora pela mão de visionários - como Gilles Peterson, a redacção da revista "Straight No Chaser" e Ashley Beedle, que dedicou um álbum do projecto Black Jazz Chronicles inteiramente a Fela Kuti. Esta segunda vaga, centrada em Londres, tornou-se seminal e, a partir daí, surgiram inúmeros projectos que passaram a reger-se pelo legado afro-beat. Antibalas, Sugarman Three e Breakestra são, notória e notavelmente, descendentes dessa geração, bem como a música produzida pelo filho natural de Fela, Femi Kuti, entretanto investido da qualidade de herdeiro, para arrelia de todos os puristas. Mais do que seguir linearmente os preceitos definidos pelo pai, Femi inscreve-se nesta nova geração de apreciadores do afro-beat, a mesma que foi capaz de estabelecer pontes de ligação com a música de dança, muito particularmente a house. Masters At Work, Faze Action, Soul Ascendants e Frédéric Galliano pegaram no legado de Fela e revolveram-no à vontade das pistas de dança ou tão só de uma nova visão para a música de África. Femi não foi, não podia ser, tão renitentente quanto ao passado. Mas o certo é que o álbum de remisturas do seu disco anterior, "Shoki Shoki", assinado pelas luminárias atrás citadas, foi mais bem sucedido do que aquele onde se encontravam os temas originais.Femi acompanhou desde cedo o pai, fazendo parte dos vários grupos que actuavam com Fela, nomeadamente no "clube" Shrine, que o pai manteve aberto durante vários anos na capital da Nigéria. Em 1986, com 24 anos, Femi decidiu deixar os Egypt 80 e fundar o seu projecto, Positive Force, encetando uma carreira a solo que nunca perdeu de vista o legado do pai. Fela viria a falecer em 1997 e desde então a pressão para Femi se assumir como o herdeiro da herança afro-beat foi constante. Ainda assim, Femi teve a lucidez para seguir o seu caminho, perseguindo novas pistas que, se irritavam os mais tradicionalistas apreciadores do afro-beat, também lhe garantiram uma nova facção de admiradores. Com base estabelecidas em Lagos, na Nigéria, mas também em Paris e em Londres, Femi é como um afro-beater de segunda geração: apegado à tradição dos seus antecessores, não pode, no entanto, prescindir da sua própria visão nem deixar de se inserir num contexto que é, naturalmente, diverso. A ideia do pai em fazer regredir o funk de James Brown e o jazz da primeira metade do século passado até às suas origens africanas sofre agora o impulso reverso. Femi não esconde que a sua música é uma adaptação do afro-beat ao cosmopolitanismo das sociedades ocidentais contemporâneas."Fight to Win" é já o quarto álbum de originais gravado por Femi Kuti com os Positive Force, apesar de apenas este e o anterior, "Shoki Shoki", terem sido alvo de distribuição decente. Firmemente apoiados numa sólida secção de metais, como aliás é costume, a dúzia de canções que compõem o alinhamento transpiram a urgência de uma música fortemente ancorada na tradição africana, ainda que o piscar de olho às novas correntes emergentes, entretanto surgidas na Europa e na América, seja uma constante. Nomes grados do hip-hop, como Mos Def ou Common dão uma ajuda e cimentam a ideia de negritude e libertação africana que é central. Enquanto as guitarras eléctricas dedilham floreados muito próprios da música praticada na costa oeste de África e o "groove" percorre insidiosamente cada tema, saxofones, trombones e trompetes aprestam-se para fornecer um vigor e brilho insuspeito, sobre o qual Femi discorre abundantemente sobre o desconcerto do mundo, mais precisamente da Nigéria. Sendo mais perigoso afrontar o inimigo britânico, são os portugueses que apanham. Em mais do que uma canção, a passagem de Portugal pela Nigéria é explicitamente apresentada como uma das forças maléficas que impediram que a Nigéria prosseguisse o seu trajecto natural e genuíno: "África é um nome português; Alkebu-Lan é o (verdadeiro) nome do meu povo". A SIDA, que vitimou Fela, também é fonte de preocupações, assim como é passada em revista a data do passamento do pai que, tal como a irmã Olusola Kuti e a prima Frances Kuboye, morreu corria o ano de 1997.Mais interessante que o conteúdo lírico das canções é a miscigenização que Femi opera em termos de estilos musicais. Partindo sempre da base africana que lhe deu nome, não deixa de ser rigorosa a fusão que pratica com outros géneros contemporâneos. Em "Missing Link" há um cheirinho de hip-hop (e até de electro) que fazem supôr estarmos perante uma qualquer nova entidade, criada algures entre Nova Iorque e Lagos; enquanto "One Day Someday" e "Eko Lagos" apontam para uma reunião com a música da Jamaica, repescando o dub e o reggae, como se o Oceano Atlântico, afinal, não existisse. Curiosamente, estes são os temas que preenchem o final do alinhamento do disco, como que escondidos dos olhares menos atentos. Mas são também aqueles onde se descobre um papel refrescante na música de Femi Kuti, capaz de reencontrar a sua raiz africana numa world-music que entretanto chegou ao ocidente, e libertando-se dos estreitos limites da terra mãe.Fight To WinBarclay, distri. Universal

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