Cova da Moura, a favela aqui tão perto

Assim que o táxi entra na Rua Principal, os traficantes tomam posições, perscrutando os passageiros suspeitos: àquela hora, naquele sítio - de pele branca - só toxicodependentes ou polícias à paisana. O motorista, um brasileiro "batido nas favelas do Rio", prossegue destemido, trepando o labirinto sujo do morro. "Tenho aqui uma 32. Se alguém vier com ideias sai com chumbo." A rua lembra o Casal Ventoso. Com um colorido africano. As vendedoras ambulantes de frutas e legumes, negras roliças, lenço na cabeça, olhar meigo e cansado, contrastam com a agitação de "dealers" e heroinómanos. O produto vende-se à luz do dia, sob a vigilância dos "controladores de tráfego", atentos a qualquer movimento, telemóvel junto ao ouvido. Apesar do ambiente pesado - apesar de todos os moradores saberem o que fazem aqueles jovens ali, às 16h00 - quer o café Djackpot, quer o cabeleireiro Tchiosa, quer o talho, mantêm-se abertos, com a clientela antiga indolente perante a miséria. O motorista não parte sem antes deixar o aviso: "Quando chamarem o táxi, o melhor é irem-no esperar às bombas da Shell, junto à estrada, que ninguém entra aqui, sobretudo depois do que aconteceu." Não é necessário precisar o que aconteceu. As televisões transmitiram, os políticos comentaram: Ângelo, 17 anos, filho de cabo-verdianos, alvejado por um tiro dramático disparado por um agente que o perseguia, apresentou o Alto Cova da Moura ao país.R., 17 anos, mora numa casa mesmo ao início da Rua Principal. Ele, como todos os moradores do bairro, sabe que a morte do amigo não mudou nada. Adivinhava-se até. "Isto ficou pior desde há um ano para cá, desde que há mais droga" - desde que os traficantes e os consumidores do Casal Ventoso se mudaram para ali. "Agora, quando passo na minha rua, os tipos vêm-me oferecer, porque não me reconhecem, não são de cá", diz. A opinião é partilhada por Isabel Rodrigues, uma das técnicas de reinserção de jovens em risco, da Associação Cultural Moinho da Juventude, com sede mesmo ali ao lado. "Os problemas agudizaram-se quando a Cova da Moura passou a ser frequentada por pessoas de fora. Os postos de abastecimento de droga, agora, são controlados por brancos. Alguns jovens do bairro, que dantes eram apenas pombos-correio, também passaram ao tráfico. Introduziu-se mais competição, há mais zaragatas, mais polícia, mais divisões entre os próprios moradores."O local onde Ângelo foi morto fica do outro lado da colina, perto da "zona VIP", como lhe chama a comunidade negra, por ser aqui que residem os "retornados". As vivendas pintadas, algumas com jardins, que se estendem pela encosta virada a norte da Rua Principal (pelo lado "bem" da Rua Principal) destacam-se do amontoado de casas atijoladas, acimentadas, ornamentadas com "grafitti", cenário do tiro que vitimou o rapaz de 17 anos. O rasto de sangue ainda lá está, mas os alunos do curso de Cidadania e Empregabilidade, um dos módulos de ensino dado pela Associação Cultural Moinho da Juventude, pisam-no naturalmente sem sentimentalismo exacerbado.Durante o dia, entre os jovens que permanecem no bairro, quem não está empenhado em negócios ilícitos ocupa o tempo nas actividades do Moinho da Juventude, por onde passam diariamente 600 pessoas. Isabel Rodrigues explica-o de uma forma curiosa. "A nossa luta é tentar que eles passem do lado de lá para o lado de cá. E que, uma vez do lado de cá, resistam. Andam sempre na fronteira entre estes dois mundos. O Ângelo, por exemplo, era um rapaz extremamente influenciável. Rapidamente voltava para o grupo dos amigos mais velhos, que roubavam carros e traficavam."A., 21 anos, é actualmente um dos monitores da associação. Encontramo-lo na área da carpintaria. "Eu não sou malandro", apresenta-se, antecipando conclusões precipitadas com sustento na aparência: argolas nas orelhas, patilha fina em escada a subir para o cabelo, onde ressalta o recorte de uma espiral. Não quer falar de Ângelo, que conheceu bem. "Não vale a pena", afirma, sem tirar os olhos de uma ripa de madeira que manuseia com perícia. "Isso já foi abafado." O que "interessa falar" é da rusga que a polícia fez há um mês e meio, da hostilidade dos agentes, que chegam ali e "varrem tudo", como se "todos fossem suspeitos".Os responsáveis do Moinho estão a "apostar tudo" em A., que não é mas já foi malandro. É um caso no limbo da delinquência, com um contexto familiar desestruturado, como o de boa parte dos jovens da Cova da Moura. "Os pais deixaram-no à nascença num carro abandonado e o bebé veio a ser encontrado por uma mulher que o adoptou, que o tratou como se fosse sua mãe", recorda Isabel Rodrigues. A adolescência ficou marcada pela criminalidade, acabando num assalto a um carro. A polícia apanhou-o e como já era maior de idade foi condenado a pena de prisão. Foi Isabel Rodrigues quem negociou com o Instituto de Reinserção Social uma alternativa. O tribunal perdoar-lhe-ia a pena se A. conseguisse reabilitar-se, completar um curso de formação profissional. Hoje está a um passo de se passar para o lado de cá. Ajuda outros jovens da associação e vai fazer um curso de "disc jockey", patrocinado pelo Instituto Português da Juventude. A. teve uma oportunidade de refazer a vida. Ângelo não.

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