Dalai-Lama: O desejo de uma ética universal

1. A visita do Dalai-Lama foi, sem dúvida, o acontecimento mediático da passada semana. A sua irradiante energia espiritual fez esquecer anos de conversa sobre a laicidade do Estado e as subtilezas protocolares. Suscitou mesmo algum fervor deslocado. Certas pessoas queriam fazer da Assembleia da República o Santuário de Fátima e do "Altar do Mundo" um parlamento mundial sobre as relações entre a China e o Tibete.Parece, no entanto, que não compete a um Estado democrático e pluralista defender opiniões religiosas nem dificultar a vida às religiões. As instituições religiosas não podem, por seu lado, invocar princípios teológicos para impor, através do Estado, as suas verdades, ou os seus interesses, ao conjunto da sociedade.Dito isto, com o Dalai-Lama ficou patente que uma figura religiosa com responsabilidades políticas não é, só por isso e automaticamente, uma intromissão teocrática: "Sou tibetano antes de ser Dalai-Lama e humano antes de ser tibetano" (cf. "Ética para o novo milénio", Lisboa, Presença, 2000, p.25).O espírito de tolerância do ilustre peregrino não pode, todavia, admitir o intolerável, isto é, o poder colonial da China sobre o Tibete. Mas nem por isso aceita o recurso a meios violentos para se libertar do terror comunista. Adopta, da forma mais inequívoca, a via das negociações que leve a uma conciliação benéfica para tibetanos e chineses.2. Em pouco tempo, o contacto directo, fervoroso e alegre com tantas pessoas e lugares portugueses tornou Dalai-Lama uma presença da nossa paisagem humana e religiosa. Não se diga que não conseguiu libertar os candidatos à Câmara de Lisboa de um preocupante inchaço do "eu": eu fico, eu faço, eu cumpro, eu sei lá!... O Dalai-Lama conhece bem o Ocidente. Este estado imperfeito dos nossos budas será reduzido a proporções aceitáveis no dia das eleições.Actualmente, a preocupação maior do Dalai-Lama é uma ética universal que não deixe ninguém, absolutamente ninguém, de fora. Somos todos responsáveis pelo que acontece: "Reis, presidentes, primeiros-ministros, políticos, administradores, cientistas, médicos, advogados, académicos, estudantes, padres, monges e monjas - tal como eu - industriais, artistas, comerciantes, técnicos, artesãos, operários manuais e desempregados, não há uma única classe ou sector da sociedade que não contribua para o regime diário de notícias tristes" (cf. op. cit. p.29). E se contribuímos para o regime diário das más notícias, também podemos contribuir para um regime diário de boas notícias. O que importa é não desprezar nada do que pode contribuir para mudar profundamente a nossa vida interior.A sua proposta de uma ética universal - ainda que não muito original - é interessante precisamente por isso. Não se trata de um universalismo regido por conceitos abstractos - que abarcam tudo porque não têm nada dentro -, mas do recurso às experiências de mudança acessíveis a todos.3. Nem sempre assim pensou. É o resultado das suas viagens pelo mundo, desde que foi obrigado a deixar o Tibete. Até aí, o seu horizonte não ia além do ângulo de visão do budismo tibetano, a que permanece fiel.Tinha ouvido falar das outras religiões - e interessava-se por elas, mas com uma informação muito limitada e dentro dos debates budistas. Depois, foi descobrindo pessoas que tinham dedicado a vida inteira a outras religiões - algumas pela oração e pela meditação, outras pela abnegação altruísta - e que tinham adquirido uma profunda experiência na sua própria tradição. Foi esse intercâmbio pessoal que o ajudou "a reconhecer o enorme valor de cada uma das grandes tradições religiosas".Não mudou de religião nem aconselha ninguém a abandonar a própria tradição: "Para mim, o budismo permanece o caminho mais precioso, por corresponder melhor à minha personalidade, mas não acho que se trate da melhor religião para todos, nem tão-pouco que seja necessário todas as pessoas terem uma crença religiosa."Agora fixou outro objectivo: "Ir além dos limites formais da minha confissão religiosa. Quero demonstrar, que existem, de facto, alguns princípios éticos universais que nos podem ajudar a alcançar a felicidade a que todos aspiramos" (op. cit., p.27).A crença religiosa implica uma prática espiritual que diz respeito ao cuidado a ter com as qualidades do espírito humano, como o amor e a compaixão, a paciência, a tolerância, o perdão, o contentamento, o sentido da responsabilidade e da harmonia que trazem felicidade para si e para os outros. mas se a religião não pode existir sem estas qualidades "espirituais", estas qualidades são indispensáveis a todos, religiosos ou não. Daí a importância universal desta prática ética e a razão que leva o Dalai-Lama a declarar, por vezes, que talvez possamos dispensar as práticas religiosas, "mas o que não podemos dispensar são estas qualidades espirituais básicas" centradas no interesse pelo bem-estar do outro."Podemos rejeitar tudo o mais: a religião, a ideologia e todo o conhecimento recebido, mas não podemos escapar à necessidade do amor e da compaixão" (cf. op. cit., p.170).

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