Desenho de "As Tentações de Santo Antão" foi visto "à lupa"

"As Tentações de Santo Antão" (1505-1506), uma das mais importantes obras da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, foi recentemente sujeita a um detalhado levantamento reflectográfico. A técnica (reflectografia de infravermelhos), que permite com maior amplitude aceder ao desenho subjacente à pintura do mestre holandês Hieronymus Bosch, revelou jarros, barcos e figuras humanas que foram abandonadas, ou simplesmente mudaram de posição, à medida que o tríptico se foi transformando numa obra acabada.Dando continuidade a um estudo elaborado em 1969-70, período em que "As Tentações..." foram alvo de uma completa série de fotografias de infravermelhos e de uma cuidada intervenção, o Instituto Português de Conservação e Restauro (IPCR), em estreita colaboração com o MNAA, fez crescer o volume de informações disponíveis sobre o complexo desenho preparatório do tríptico. "Os trabalhos de 1969 são de grande qualidade, mas estão limitados à tecnologia que então se utilizava. A fotografia de infravermelhos produz bons resultados quando a camada cromática é fina ou os pigmentos aplicados não têm grande poder de cobertura. A reflectografia, por seu lado, permite atravessar camadas com maior espessura e pigmentos com grande cobertura, como os verdes e os azuis", explicou ao PÚBLICO Pedro Sousa, que com Ana Mesquita e Carmo compõe a equipa que efectuou o levantamento.Pedro Sousa, também responsável pela divisão de fotografia e radiografia do instituto, levou a Bruges (Holanda), ao congresso "Tecnologia e do Desenho Subjacente na Pintura", realizado em Setembro, uma comunicação sobre os trabalhos conduzidos pelo IPCR, suscitando um renovado interesse na obra. "Fomos contactados por especialistas de diversos países, não só historiadores de arte. Para além de toda a riqueza interpretativa que interessa ao historiador, obras como 'As Tentações...' são cada vez mais objecto de estudo de outras áreas científicas."Novas descobertasA reflectografia de infravermelhos, aplicada à totalidade do tríptico, revelou novas figuras que, embora não alterem a leitura global da obra, podem vir a trazer dados imprescindíveis. "A reflectografia não veio alterar o significado iconográfico da peça. Tudo porque aquilo que hoje nos é dado ver é o que o pintor quis que víssemos. De qualquer modo, ela é muito importante porque o próprio desenho subjacente a que dá acesso avança indícios fundamentais sobre a técnica e o estilo de Bosch", afirma Luís Porfírio, director do MNAA. No painel central (sujeito a 100 reflectogramas), foram identificadas diversas modificações. Na torre, numa espécie de coluna subdividida em várias cenas, o desenho subjacente mostra traços de outras figuras, com destaque para a cena em que duas pessoas carregam um enorme cacho de uvas apoiado numa vara. Junto ao Cristo na cruz, no local onde a fotografia a infravermelhos já havia descoberto um vulto, parece surgir outro ainda. Na mesa redonda, o jarro mudou de posição (ou era suposto existirem dois?) e, por trás das figuras que a cercam, parecem erguer-se telhados. Nos painéis laterais, Bosch terá abandonado o desenho de alguns barcos, alterado ligeiramente a posição de Santo Antão e do seu cajado, e decidido tornar as margens do rio menos geométricas. "O que o desenho subjacente nos mostra, também, nomeadamente nas figuras sobre a ponte do painel esquerdo, é que o traço do pintor no desenho preparatório era muito rigoroso, não se limitando aos simples apontamentos, mais habituais", defende Pedro Sousa.Há quem oponha o pessimismo e a crueza das cenas presentes em "As Tentações de Santo Antão" (1505 - 1506) à atmosfera do tríptico "Jardim das Delícias" (1504-1505), actualmente exposto no Museu do Prado, em Madrid. Muitos foram os que o estudaram ao longo dos anos, sobretudo porque, segundo o director do MNAA, se trata "de uma obra sem fim", cujo carácter enigmático ficará sempre por desvendar.As tábuas narram a história de um eremita de origem egípcia, baseando-se nas fontes literárias disponíveis na época, sobretudo na descrição de Santo Atanásio em "Biografia de Santo Antão". No painel central, Santo Antão assiste, ajoelhado, à primeira investida dos diabos tentadores que se dirigem para o local ( a "fortaleza" ou "vala antiga", segundo o catálogo de uma exposição realizada no museu, em 1994) onde se refugiara. Depois de violentamente torturado, o santo regressa (no painel esquerdo) ao seu espaço de meditação, sendo amparado, ao atravessar uma pequena ponte, por três figuras, uma das quais (a de vermelho) tida como um possível auto-retrato de Hieronymus Bosch. Nas tábuas da direita, Santo Antão é tentado por uma bela mulher que se faz passar por rainha, apercebendo-se, mais tarde, ao ser levado para a cidade onde aquele demónio no feminino se teria entregue a obras de caridade (Alexandria), do terrível engano que cometera."Trata-se de uma das mais complexas obras da nossa colecção. É de um artista que está, de certo modo, a cavalo entre dois tempos - aquilo a que se convencionava chamar o final da Idade Média e o início dos tempos modernos."Segundo Mário Pereira, do IPCR, este levantamento reflectográfico marca apenas o início da colaboração entre as duas instituições, em torno de "As Tentações...". "Os estudos deverão continuar de uma forma multidisciplinar, com especial incidência na história de arte, onde o museu pode dar um grande contributo. Muito provavelmente serão convidados especialistas espanhóis e holandeses", diz o responsável.

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