Torne-se perito

Brother Gay

Os leitores do PÚBLICO puderam ontem tomar conhecimento, na secção "Diz-se", da mais recente tirada homofóbica do eurodeputado socialista Carlos Candal, em declarações de fino recorte ao jornal "O Crime". Em si mesmas, vindas de um conhecido expoente da mais impenitentemente reaccionária esquerda, as declarações nada têm de novo, a obsessão "anti-gay" já lhe sendo conhecida desde um célebre "Manifesto Anti-Portas" nas legislativas de 1995. O que a citação obviamente não reproduz é o contexto em que tais afirmações foram dadas à estampa. Vêm elas a propósito do Ricardo, que até à sua recente expulsão foi um dos "residentes" do Big Brother de maior notoriedade pública, saindo do anonimato com o mais mediático "coming out" até hoje ocorrido em Portugal. Interrogado sobre se tinha uma namorada, respondeu ele que sim mas que era um namorado. Logo o Ricardo e sucessivamente a sua mãe e protectora do casal, Dona Odete, passaram à ribalta; quanto ao namorado, o Dédeu, obstinou em manter-se na sombra, cedendo finalmente a aparecer na "TV 7 Dias", a instâncias de um célebre ex-residente do Big Brother 1, o Mário, agora "repórter", enquanto dois seus ex-colegas, Zé Maria e Marco, comentam os eventos na própria TVI.Depois do clamor opressivo que suscitou a primeira série do "reality show", criando um clima de condicionamento social a quem não estivesse inteirado das peripécias (terá então destronado mesmo o futebol como motivo de sociabilidade dominante), e de ter sido âncora à vertiginosa ascensão da TVI à liderança de audiências, o Big Brother foi subalternizado pelas telenovelas a quem tanto impulsionou na subida de quotas. O fracasso de sucedâneos e a diluição da novidade fizeram mesmo supor o declínio dos "reality shows", opinião designadamente reiterada pelo mais conhecido representante em Portugal da própria Endemol, produtora do "show", Piet Hein Bakker.Notar-se-á, contudo, que se as tentativas da SIC foram um considerável falhanço, a TVI não dá sinais de desistência do género, para os interesses da estação sendo ainda relevantes as "performances" do Big Brother e eventualmente do mais recente Survivor. Sinal claro é o lançamento na TV Cabo do canal por assinatura TVI Eventos, ocupado em transmitir integralmente as imagens da casa. Como é óbvio, o destaque dado ao Big Brother depende em muito dos efeitos de novidade introduzidos num dispositivo tão tristemente pobre e tão sujeito a usura. O "gay" Ricardo veio preencher essa função de novidade e de impacte social.Nesse local privilegiado de observação da percepção e construção mediática do real e do mundo que são as bancas de jornais e revistas, a "saga" do concorrente ocupou espaço de relevo, nomeadamente em três publicações do grupo Impala - "Ana", "Mulher Moderna" e "TV 7 Dias". As incidências do destaque dado por essas publicações estão longe de ser negligenciáveis, até pelo número de vendas que atingem: 44.675 a "Mulher Moderna", 96.218 a "Ana" e 134.837 a "TV 7 Dias", no 1º semestre deste ano, todas indiferentes à conjuntura recessiva de publicações congéneres, mesmo em acentuada subida em relação a idêntico período do ano passado - subida mesmo avassaladora no caso da "TV 7 Dias", 54,18%, que no período mediado conseguiu ultrapassar as concorrentes directas, "TV Guia" e "TV Mais", em queda. Mas também essas concorrentes, ainda que com menor incidência, não deixaram escapar o assunto, caso de um inquérito na "TV Guia" de 12/09/01. Habitual inquirido quando se abordam identidades masculinas, e designadamente "gay", o antropólogo Miguel Vale de Almeida advertia: "Temo que o Ricardo tenha sido seleccionado justamente por ser 'gay'. O efeito é ambíguo: poderemos começar a ter sempre um 'gay' simbólico neste tipo de programas, como já temos o negro simbólico (ou, noutras coisas, a mulher simbólica)."Ocorre que o tal "'gay' simbólico" foi particularmente útil numa edição congénere, a britânica. O director do Channel Four, Michael Jackson, até publicou no "Observer" um artigo em que apresentava o facto de o Big Brother ter sido ganho por um "gay" como significativo das mudanças sociais ocorridas nos últimos 20 anos e de como elas tiveram expressão, ou foram mesmo impulsionadas pelo próprio canal. Ocorre também recordar que no Big Brother 1 foi noticiado, e não desmentido, que um dos quesitos à selecção dos concorrentes era não serem homossexuais.O caso do Ricardo será particularmente interessante à consideração dos modos da construção social da individualidade suscitados pelo apelo do Big Brother - questão de relevo, a necessitar de outra abordagem. No caso, se o seu "tempo de antena" terminou, os efeitos colaterais não se desvaneceram ainda. Basta notar uma muito recente entrada no sítio do "show" no Clix: "Casamento anunciado - O Ricardo e o Dédeu vão ter que casar na Holanda, terra da Endemol, produtora do BB. Para bom entendedor..."

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