O cego conhecido por afinador de pianos

Haverá uma dúzia de afinadores de pianos, se tanto. Armando Azeredo, um artista do mundo das fantasias e das cópias em prata de jóias valiosas, embora cego de nascença, orientou-se pelo amor à música e foi na cantiga. Especializou-se. Para afinador, só lhe faltam as ferramentas. Por isso passou a dedicar-se a tempo inteiro aos livros e discos em vinil. Umas boas centenas de discos a que espera juntar os que as pessoas tencionam deitar no lixo. História de um homem conhecido por afinador de pianos sem alguma vez ter afinado o piano a alguém.

Armando Azeredo tem fé. Acredita no diploma de afinador de pianos que pendurou por cima da cama do seu T0 na Reboleira, um apartamento próximo do Bingo, que paga com a ajuda da reforma e de um subsídio de mérito cultural deflacionável da Secretaria de Estado da Cultura. Tem provas dadas e três anos de formação esmerada. Em média tirava 19/19,5. A professora nunca arriscou o 20 para não lhe afinar a vaidade.O potencial afinador era uma promessa para a profissão. E continua a sê-lo. Recebeu o diploma com bom aproveitamento no Natal de 1994 e até agora ninguém lhe ofereceu as ferramentas. Segundo uma "factura proforma" do Salão Musical de Lisboa, que as pode encomendar a lojas da especialidade alemãs, espanholas ou inglesas, para as comprar é preciso "mil e setenta notas de conto". Sem elas, o afinador não poderá fazer o que está ao seu alcance - dar as notas certas às teclas de um piano. Tem apenas meia dúzia de chaves para uma grande diversidade de cravelhos, peças de metal que controlam a tensão das cordas. Aceitar trabalho com as chaves que tem para afinar o seu Barratt & Robinson, que lhe serve para não perder o traquejo, seria uma aventura.Deitado no sofá, esperou dias a fio pelo som do telefone e por uma mensagem agradável. Do centro de emprego ou da câmara municipal. Cheio de vontade de começar a espalhar os seus cartazes - já tem a maquete para entregar numa gráfica -, o homem acabou por perder o ânimo depois de algumas "negas", adormecendo muitas vezes ao som dos seus discos e livros gravados. De nada lhe serve estar inscrito no centro de emprego sem um mecenas ou um benemérito para as ferramentas.Foi num dos longos momentos de espera, ao som de música clássica, jazz e raízes populares de todo o mundo, que lhe ocorreram algumas possibilidades. "Há-de haver tanta gente a deitar discos fora... Há-de haver tantos discos no contentor... Porque é que eu não hei-de fazer um apelo?""Apelo à generosidade da população: sou cego e fiel aos discos em vinil, não os deitem fora, dêem-mos, obrigado." Por trás deste apelo, enviado a diversos jornais com um pedido de publicação, esconde-se uma história com princípio, meio e fim imprevisível. "Espere um bocadinho. Vou pôr um disco... Joni Mitchell... conhece?" Armando Azeredo, que deixou o artesanato num momento de cansaço táctil e crise criativa, muito bom no seu ofício nos bons velhos tempos e mais conhecido agora por afinador de pianos sem alguma vez ter afinado o piano a alguém, longe do monopólio dos restaurantes e hotéis de luxo, que pertence a dois ou três afinadores, põe o disco a girar e dá dois passos em direcção à mesa da sala, desconfiado: "Conhece Joni Mitchell?"Armando Azeredo, que não quer perder preciosidades e, porventura, registos que não voltarão a ser editados, acha que não tem nada a ver com a época que o rodeia. Defende, sublinha, uma sociedade justa e fraterna, que derrame amor ver-da-dei-ro. A sua "escola-mãe", a Helen Keller, fez dele um democrata. Só ouve a Antena 2 e o segundo canal da televisão. Vem isto a propósito da música seleccionada, a que se seguem as apresentações. "Esta é a minha biblioteca", diz o afinador, que se define como um autodidacta, com a história da música entre os assuntos preferidos, apontando para uma estante com livros gravados e em braille, onde também guarda apontamentos, cartas enviadas e recebidas e os discos em vinil. Tem mais de 500, dos quais quatro caixas de clássicos foram oferecidas na sequência do anúncio, "60 discos por alto", a que soma alguns CD. A casa está arrumadinha. A senhora que lhe faz as limpezas todas as semanas costuma ir à quarta-feira.Agora tem o tempo mais ocupado. Iniciou em Abril um curso de tapeçaria na Fundação Raquel e Martin Sain. Aguardava a oportunidade desde finais de 1996, altura em que testou as suas capacidades para o efeito e a união com a sua mulher, que conheceu quando expunha trabalhos na Rua Augusta, caminhava para o desfecho. Para trás ficavam dez anos de comunhão de casa e negócio. Ela fazia marcação e reposição de peças e inflacionava os preços. Ele era capaz de trabalhar horas sem fim na mesma peça. No folheto de apresentação de uma rifa de 1985, que ainda guarda, surge a fotografia de uma gargantilha, um par de brincos e um alfinete cravejados de brilhantes no valor de 45 mil rosas que equivaliam a 50 dias ou 400 horas de trabalho, de acordo com a legenda. Se lhe comprassem um "anelinho", o mais certo era vender uma senha também.O artesão dedicava-se às bijuterias desde 1970. Chegou a copiar para a prata jóias que as senhoras não usavam com medo do roubo, milagre que conseguia realizar através de moldes de borracha de silicone. No princípio da actividade, que acumulava com a de fiel de armazém de uma editora, ia para Cascais - "a Rua Direita foi sempre a Rua Direita" -, Estoril, Sesimbra e Costa da Caparica. Construía as suas peças com madrepérola, tartaruga, marfim e coral, que as distinguiam à légua de outras bijuterias, enquanto as pessoas deitavam o olho às que estavam prontas. Em 73 foi despedido e passou a encarar as bijuterias como modo de vida. Expôs em casinos, hotéis, galerias de arte, feiras e salões de artesanato. Esteve, sublinha, na Bienal de Vila Nova de Cerveira e nos Coruchéus. Nos intervalos das exposições vendia em escritórios e repartições, onde fidelizou clientes, com quem criou um elo que só o aparecimento dos seguranças nos edifícios e os preços das peças, que a mulher se encarregou de fazer subir, partiu.Ainda assim o negócio rendeu até 92, a que se seguiu o período de agonia e uma nova esperança, o "mundo da afinação", que viria a transformar-se numa sucessão de acontecimentos desgastantes e irremediáveis períodos de espera. A Associação de Promoção do Ensino dos Cegos deu o curso e desapareceu, deixando-o cheio de expectativas, que viria a alimentar com a demonstração da arte de afinar um piano na FIL. Da câmara recebeu uma carta. Do centro de emprego três. Ferramentas nem uma. A última resposta do centro referia-se à falta de uma sede. Armando Azeredo ficou de boca aberta. "Um afinador de pianos é um 'free-lancer'", esclarece.O que falta a Armando Azeredo, isso sim, são as ferramentas. Se tivesse na mão todas as chaves de que precisa e mais alguns instrumentos não menos importantes, como um afinador, vários alicates, um abafador e um corta-feltros que custa mais de 120 contos sem IVA, poderia então começar a afixar o seu "cartaz de interiores". No Bairro Azul, em edifícios importantes, salões de chá, lojas e cafés bem frequentados de Lisboa, Estoril e Cascais. No "mercado das casas particulares" não devem faltar, desconfia, pianos sem uso que lhe levariam quatro horas a afinar cada um, em média o compasso de espera para o som perfeito de todas as teclas, com a correcção dos martelos e dos abafadores incluída. Em média, os afinadores também cobram 15 contos por cada hora de trabalho, mas Armando Azeredo garante que não precisaria de tanto.Nos próximos três anos, o afinador, fascinado por tudo o que é arte, vai preencher parte do dia com o curso de tapeçaria. Está a aprender nozinhos. De manhã toma um duche e o pequeno-almoço e sai. Às quatro da tarde está de regresso a casa. A seguir ao almoço fuma a sua "cachimbada", que repete ao fim da tarde. Sempre que pode faz declarações de amor e beleza às crianças - nunca plantou uma árvore e lamenta não ter um filhote. Depois do curso continua as suas sessões de leitura e audição e, se tiver companhia, vai jantar a uma casa da Reboleira que serve muito bem. Todos os dias verifica se o carteiro deixou alguma coisa na caixa especial para literatura em braille que há junto aos elevadores. Recebe "abundantemente" livros da América do Sul e de Espanha, sobretudo sobre música, a vida e a obra de escritores. A Gulbenkian é um manancial de livros sobre história da música e os instrumentos, mas o afinador de pianos também não tem um computador que lhe permita o acesso a informação em tinta.Armando Azeredo viveu com os pais até à separação. O pai, alfaiate, casou outra vez e a mãe, costureira, também voltou a juntar os trapinhos, união de que nasceu um "meio-irmão" que toca piano num hotel de Lisboa. Ele foi viver com o pai e aos 13 anos, vítima de maus tratos da madrasta, tentou suicidar-se. Deitou-se ao rio e acordou com "uma mão muito fria, de mulher jovem". "Era a Fernanda Lapa", recorda, na altura assistente social. A história deu em filme. Armando Azeredo, nascido em 1954, fez de Armando Azeredo em 1983, por isso usou uma peruca para se auto-retratar aos 19 anos - na altura usava cabelo comprido, conforme pode ver-se no álbum de recortes de jornais. Foram escritas muitas notícias sobre o Armando artesão e o Armando do filme, em que contracenou com actores de primeiro plano. Há uma fotografia dele em cena com a Lídia Franco. Pede para a procurar. Porque é, diz, "meio pitosga".

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