Bienal de Veneza encena uma humanidade angustiada

Pela cidade desdobram-se iniciativas impossíveis de seguir em simultâneo. Desde quarta a sexta a Bienal de Veneza é reservada ao público especializado. Hoje, sábado, reabre às 17h com inauguração oficial e entrega dos prémios ainda não revelados. Amanhã, domingo, e até 4 de Novembro, pode o público geral aceder a todos os espaços. Quinta-feira a feira de arte contemporânea começou com uma multicultural (dantes dir-se-ia folclórica) saudação ao sol nascente por um grupo de guerreiros maioris neo-zelandeses, aqueceu com o strip da gualtemateca Regina Galindo em plena hora de ponta dos Giardinni (sede central dos eventos) e prolongou-se toda a noite em festas pelos pavilhões situados por toda a cidade: a Holanda, o Brasil, com direito a caipirinhas e rixas de rua, e Portugal acumulavam público que desejava entrar como quem ser bate por um lugar numa discoteca da moda. A festa da bienal faz-se mesmo que o panorama encenado pelos artistas na exposição principal ("Plateau de l'humanité") seja de certo modo angustiante. Ontem, entre a acumulação de eventos inaugurais dos pavilhões nacionais, Portugal abriu, com a presença do Ministro da Cultura, José Sasportes, a sua representação oficial no Pallazzo Vendramini, com uma forte presença individual de João Penalva (ver entrevista amanhã na PÚBLICA), enquanto dois outros portugueses (Julião Sarmento e João Onofre) surgiam com destaque na selecção pessoal de Harald Szeemann.Penalva, comissarido por Pedro Lapa, director do Museu do Chiado, em Lisboa, tirou todo o partido cenográfico do magnífico cenário setecentista do palácio que acolhe desde 1997 (primeiro Julião Sarmento e depois Jorge Molder) a representação portuguesa. Nas salas disponíveis, entre mármores, tectos e estuques pintados, encenou uma reflexão sobre as questões próprias da competição a partir de "Os Mestres Cantores de Nuremberga", uma obra que fala do processo, das regras e percalços de selecção e ascensão de um artista. Da ópera de Wagner não se ouve uma nota mas o compositor, o lugar e condicionalismos de composição da obra, ou algumas situações relacionáveis com o tema são evocados em vídeos, fotos, documentos originais, copiados ou forjados. A distância entre cada um destes níveis é acentuada por um efeito recorrente, de Beuys a Broothears, da arte contemporânea: a citação irónica (ou não) ao museu. Ou pelo mais eficaz e surpreendente efeito de dois belíssimos textos ditos em esperanto e traduzidos em legendas inglesas. São eles que vão contextualizando o tema da exposição sobrepondo-se às imagens em plano fixo de duas diferentes paisagens. Desviante (ou demasiado específica ao contexto nacional) parece a longa referência a Simone de Oliveira e ao desaire de Portugal no Eurofestival de 1969. Embora não deva ser entendido em separado, um terceiro vídeo alcança o objectivo desejável de dar puro sentido visual à proposta programática de Penalva. É mesmo um dos momentos mais fortes das obras apresentadas em toda a Bienal de Veneza: seguindo eficazes tomadas de vista, uma fabulosa montagem e um jogo de efeitos sonoros perfeito, somos confrontados sem recuo com a gigantesca e vertical imagem de esforço, prazer e força de um atleta praticando argolas. O ministro, que tutela a entidade produtora do evento, o Instituto de Arte Contemporânea, não se pronunciou sobre o futuro e estratégia da presença portuguesa daqui a dois anos mas, no dia seguinte, visitando particularmente os pavilhões do Arsenal mostrou descrer sobre a sinceridade da angústia de que as propostas artísticas davam conta. Pelo menos deu a entender que não era esse o seu estado de espírito num mundo onde havia tantas coisas boas para ver.Ron Mueck, com as suas incómodas figuras de cera, em nus hiper-realistas e fora de escala, abre um desfile que nos confronta com o vídeo. Segue-se, jogando com efeitos de reflexo e retardamento da imagem, Bill Viola que sobrepõe duas figuras que mergulham longamente a cabeça na água para a levantarem em aflição. O cineasta Abbas Kirostami apresenta-nos em tempo real o mais tranquilo sono, filmado na perpendicular e projectado no chão, de um jovem casal. Mas logo João Onofre ou Julião Sarmento repõem o discurso nos limites do desequilíbrio. O primeiro apresenta (num vídeo que já vimos na Culturgest sob comissariado de Pedro Lapa e no ARCO deste ano) um casting de jovens que sem convicção nem coragem citam uma frase de Ingrid Berman. O segundo, que trabalha com Atom Egoyan, apresenta uma sofucante e rebuscada relação de poder. É também a vertigem da imagem e da palavra que percebemos ter atingido um ponto de não retorno na filmagem de uma peça de Beckett, uma das últimas obras interessantes antes dos espaços onde Kabakov desilude (numa produção mal conseguida de uma estação de comboios auschwitziana: "Nem todos alcançarão o futuro") e Richard Serra, um dos premiados já conhecidos, aparece com duas gigantescas espirais de aço. No pavilhão de Itália, em plenos Giardinni, e concebido segundo um plano tradicional a proposta de Szeeman prossegue com uma maioria de pintores: entre eles, outro dos grandes premiados, Cy Tombly, clássico como Serra, americano como Serra, mas estabelecido em Itália há mais de 40 anos.

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