Morreu o Hermínio

O Hermínio costumava dizer que os poetas eram para ele uma família. O Cesariny, o Herberto, o Ruy Belo, o Al Berto, o José Agostinho Baptista, o Ruben A., tantos que ele amava e divulgava como se os versos deles tivessem saído dos seus dedos. Aos vivos, editava-lhes os livros, acompanhava-os, ocupava-se deles. O Hermínio- quem o conheceu, sabe disso-, era um homem de afectos, conseguia o milagre de aliar à amizade, a inteligência, a cultura e a paixão pela poesia. O Hermínio não gostava só de livros. Ele gostava muito de viver. De ter nascido em Trás-os-Montes e de viver. Viver bastante, intensamente. E conseguiu outro prodígio: o ser rural no caos urbano. Não era possível olhar para o Hermínio sem ver o transmontano de Parada do Pinhão, Vila Real, que um dia arribou a Lisboa para tirar um curso de História. Grande, conversador, bom garfo e bom copo, culto, senhor do seu nariz, mas arredio a brigas, um amigo em quem se podia confiar. Ele próprio o dizia: "Gosto de pensar que trato a editora como quem trata uma vinha".Agora o Hermínio morreu. Um cancro matou-o. Foi ontem, na sua casa, em Lisboa, após uma luta de um ano, em tratamentos. Tinha 48 anos. Uma morte anunciada, mas inesperada, que ninguém era capaz de acreditar. Mesmo no hospital, ele não desistia de comandar a sua editora, orientava ao telemóvel, falava com ardor dos próximos projectos, das traduções. Quem o visitava ficava surpreendido com a sua energia. Não falava de sofrimento, nem de morte. Sabia ouvir as pessoas e dar-lhes ânimo. Era incrível a sua capacidade de escuta. Fê-lo até ao fim. E, depois, tinha a arte de falar de livros e o desejo de editá-los. Às vezes confessava que sabia pouco o que era ser editor, apenas que "só sabia fazer os livros de que gostava". Nunca se armou em escritor. Mas não punha de parte o vir a escrever as suas memórias, embora "não para fazer um exercício de vaidade". Em 1997, dizia ao PÚBLICO (10-11-97): "Às vezes, tenho a sensação de que a edição é outra forma de escrita, é uma maneira de escrevermos um livro maior". A prova disso é o seu último acto poético: a publicação, há dias, de "Rosa do Mundo - 2001 Poemas Para o Futuro", a maior e mais completa antologia de poetas de todo o mundo. Um grande orgulho seu, um exemplo de força de alma contra os males do corpo. Na sua última grande entrevista, ao DNA (12/5/2001), afirmou: "Morrendo brevemente, já ganhei muita coisa". Ontem, ao PÚBLICO, o poeta José Tolentino Mendonça disse que o Hermínio era uma pessoa extraordinária: "Foi espantoso como, no meio do sofrimento, conseguiu deixar florir a 'Rosa do Mundo'. Como se tivesse sido tocado por uma graça de esperança". O que impressionava nele, acrescentou Tolentino Mendonça, "era sua espontaneidade no viver, algo que comungava com uma grande inocência, uma comunhão tanto com o verso, como com uma flor bravia ou o canto de um pássaro". Mas o Hermínio morreu. Num dia de calor e de lua, duas coisas que não dispensava, para além dos livros. E já não pode ir tomar banho no Rio Pinhão, como na infância, nem ir para o sul, como gostava, passar férias em Cacela Velha ou deleitar-se com um vinho branco caseiro ao cair da noite. Ou então ouvir as suites de Bach e ler António Maria Lisboa.Os anuários, as livrarias, as agendas, os poemas em sacos de padaria como aconteceu em Guimarães em 1998, a "Phala", os poemários, eram alguns dos mimos que a sua editora dava aos leitores. O Poemário, é um calendário, não uma antologia, como salientava: "Desejamos que, diariamente, o leitor possa contaminar a passagem das horas com versos como este de Herberto Helder, 'Temos um talento doloroso e obscuro. /Construímos um lugar de silêncio. / De paixão.'"Manuel Hermínio Monteiro era licenciado em História pela Faculdade de Letras de Lisboa e editor da Assírio & Alvim há mais de 20 anos. Entrou ali, como vendedor, em Abril de1974, ainda estudante, num momento em que a editora, fundada em 1972, vivia numa crise de falência. Os problemas, as angústias, a militância cimentaram na editora "um espírito Assírio", o que ajudou a que não encerrasse as portas e que hoje pudesse estar, como ele dizia, "com uma saúde de ferro".A ruptura entre a Assírio dos anos 70 com a dos 80, deu-se com a publicação da obra "quase mítica", como ele lhe chamava, de António Maria Lisboa, a que se seguiu a de Herberto e a de Cesariny e também, "tirados do pó das velhas bibliotecas", as obras de Mário Sá-Carneiro, Pascoaes, António Patrício ou Ângelo de Lima. Esta atitude - Hermínio assumiu a direcção em 1983-, abriu caminho para um trunfo decisivo para a editora, a publicação, nos anos 90, da obra completa de Fernando Pessoa. "Uma felicidade" para o editor que assumia, em 1997, no 25º aniversário da Assírio & Alvim, estas palavras: "Achamos que a nossa postura tem a ver com o considerarmo-nos uma geração de herdeiros do grande legado da arte poética portuguesa".Hermínio Monteiro fez os estudos secundários em Arouca e no Porto, antes de chegar a Lisboa. Aqui, esteve ligado às Associações de Estudantes, tendo, por isso, e por ser refractário à tropa, sido preso pela Pide e encarcerado em Caxias durante uma semana. Mas eram as vésperas do 25 de Abril de 1974.O corpo de Manuel Hermínio Monteiro esteve ontem em câmara ardente na Igreja de S. Mamede, em Lisboa. O seu funeral realiza- se hoje, após uma cerimónia religiosa, às 9h30, seguindo para sua terra natal, Parada da Pinhão, concelho de Sabrosa, Vila Real, onde será realizada, às 17h, uma missa na igreja local.

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