Helena Roseta

O percurso de fulgurante ascensão e queda dos títulos ligados à nova economia da Internet levou alguns investidores tradicionalmente apotados em estratégias de longo prazo a mudarem de perspectiva. Em contextos assim, especular pode mesmo ser o mais eficaz.

Tem um escritório-atelier, perto da Assembleia, onde me recebeu. Contrastando com a solidez do seu corpo, a casa parece de bonecas. Logo à entrada se percebe que a escala do prédio nos convida a jogar às escondidas - para tu entrares, devo eu sair? Havia música barroca no ar quando cheguei. A Helena nem me deu tempo para saber quem tocava o quê. Calou o CD, para que algum silêncio se instalasse à nossa volta. Recebi o gesto como uma delicadeza da minha informal anfitriã - a conversa deveria depurar os sons ambientes e guardar a tonalidade exacta das nossas palavras, dos nossos silêncios, dos nossos risos... se os houvesse. E houve! Consentiu-se apenas uma deriva gastronómica, dando-me a provar um queijinho fresco, macio e saboroso. O telefone tocou antes do gravador rolar; davam-lhe os parabéns por se ter esgotado a primeira edição do seu "Os Dois Lados do Espelho", lançado há pouco mais de um mês. Uma dúvida, persistente e fininha, instalou-se entre as duas: haverá um substantivo português para o esgotar de uma edição, ou esse é um sentido que mora apenas num verbo? Não se pode dizer "esgotamento de um livro", pois não? Há que pedir ajuda a um linguista. Por estas e outras questões, nós, que nunca andámos muito próximas, continuámos distraidamente off a contar histórias. A melhor foi da Helena: numa vila alentejana, onde estivera na véspera, foi interpelada deste jeito - "A senhora continua em progressão para a esquerda ou já acabou?" Sem que precisássemos sequer de o referir, adoptámos a dita "progressão para a esquerda" como uma espécie de senha cúmplice de um fim de tarde lisboeta, inventado a propósito desta "conversa com vista para" uma das mais despretensiosas e genuínas militantes da causa política e da cena pública portuguesa.MJS - Helena, diz-me quem és.HR - A tal pergunta. Fiquei na dúvida se uma pessoa é aquilo que já foi, ou aquilo que ainda quer vir a ser. Mas, com esta idade, também é difícil mudar. Portuguesa. Feminino e singular. Arquitecta não praticante. Sou, fundamentalmente, uma pessoa que gosta muito de fazer perguntas. Acho que sou uma perguntadora (dir-se-á assim?).MJS - O teu reino é o das questões?HR - Sempre. Quanto mais a gente caminha mais perguntas tem para fazer. É capaz de ser geracional isto das respostas serem provisórias e a permanência residir nas perguntas. Às tantas são sempre as mesmas. Uma das diferenças entre nós e os mais novos de agora é que para eles há coisas definitivas que lhes modelam o modo de vida: só casam com casa, carro, emprego, carreira. São coisas que nem nos ocorriam. MJS - Foi pelas questões que chegaste à política?HR - Foi pelo lado das injustiças. Venho de uma família conservadora, de direita, mas a minha mãe era particularmente sensível às injustiças e andava sempre envolvida em múltiplas obras sociais. Quando morreu, o seu funeral foi acompanhado por imensos ciganos, mulheres e homens que a conheciam das obras em que se metia. Ficou-me dela essa atenção e esse desconforto. E uma vontade, constante, de tentar mudar o estado das coisas. MJS - O curso de Arquitectura apontava já nesse sentido, no de mudar as coisas?HR - Não sei. Gostava muito de Matemática e era o que queria seguir. De um dia para o outro, virei-me para Arquitectura e, logo na primeira aula, quando o professor, o Nuno Portas, perguntou a cada aluno a razão que nos levara a escolher o curso, a minha resposta foi - "para resolver o problema da habitação em Portugal! " Nem mais, nem menos. MJS - Estou a tentar imaginar a impressão causada no mestre por esse teu humilde desígnio...HR - Chamou-me à razão e, sobretudo, explicou-me muita coisa. Foi uma sorte tê-lo tido como professor, a ele e a mais alguns, como o Jorge Gaspar, geógrafo. A minha aprendizagem do país, das assimetrias sociais, dos problemas que se colocam ao urbanismo, foi sedimentada nesse período da Escola de Belas Artes. À época, reputada de esquerda. E percebi, talvez mais cedo do que outros cuja maior preocupação era a análise da exploração dos camponeses e da classe operária, que a desigualdade que marca com mais violência a segunda metade do século XX está fundamentalmente centrada na vida que se vive nos grandes centros urbanos. MJS - Entras para Arquitectura em meados dos anos 60?HR - Em 1966. Apanho gente muito boa, do lado dos professores e dos alunos. Estava-se no rescaldo da crise académica de 62. Do lado católico, e das reflexões que eu então fazia, mergulho em cheio no Vaticano II e entusiasmo-me com aquela leva de padres jovens. Foi tudo isso que me atirou para a frente. MJS - Que memória guardas com mais nitidez dos tempos da ditadura, do antes do 25 de Abril?HR - Se me reportar aos anos 70 e ao flop marcelista, a sensação mais nítida era a de que cá não acontecia nada. E de que estávamos todos cheios de sede de ver e conhecer coisas. Como é que explicas hoje aos mais novos que era preciso atravessar os Pirinéus para veres os filmes e as peças que querias ver, para comprares os livros que querias ler, para conversares com quem quisesses e dizeres o que te apetecesse, em esplanadas, na rua, onde calhasse? Sem limitações. Sem teres que olhar para trás. Eles não podem entender.MJS - Entendendo eles ou não, é nossa obrigação contar-lhes e não consentir que a memória seja suspensa...HR - Não tenho sobre isso a menor dúvida.MJS - A propósito de suspensão, casaste a meio do curso e tiveste as tuas três filhas de seguida. Custou-te pôr de lado, por uns tempos, a tua participação activa e profissional?HR - Não, não. E não estive nada de lado. Encarei esse período como outra forma de participação. E bem activa, por sinal. 1973 deve ter sido um dos meus anos mais participativos. Estava eu já na Maternidade, a horas do nascimento da minha terceira filha, quando foram lá buscar a minha tese ao Congresso da Oposição de Aveiro. Dois meses depois estava presa, em Caxias.MJS - Mas é com o 25 de Abril que saltas, como muitos, para a rua?HR - Literalmente e no próprio dia. Desde as primeiras horas, desde as primeiras notícias das rádios. Aí larguei as crianças com o pai e, se queres saber a verdade, nem consigo lembrar-me bem por onde andei e quantas horas durou aquela deriva. Nunca esquecerei a comoção da saída dos presos de Caxias. Parece-me estar a ver o Nuno Teotónio Pereira, como se fosse hoje, a sair da prisão. Esse momento é dos mais intensos. De arrepiar. O 25 de Abril, e os dias que se lhe seguiram, foi um extraordinário momento de "enamoramento geral", glosando o Alberoni. Havia no ar uma espécie de felicidade luminosa, própria desses estados nascentes. Foi um grande privilégio ter vivido esse momento.MJS - Esse estado de "enamoramento colectivo" de um país inteiro também não é possível fazer entender aos mais novos, porque a mediação é sempre redutora.HR - Penso que é mais fácil, mesmo assim. Eles terão tido dois momentos em que alguma coisa de parecido aconteceu e foi visível - a queda do Muro de Berlim e Timor. Puderam ver essa coisa que às vezes acontece aos povos e às culturas e que põe as pessoas a chorar e a cantar e aos abraços na rua. Timor e a forma como a sociedade portuguesa reagiu, devia parecer uma coisa muito estranha para quem a via de fora. Lembro-me da perplexidade de Eduardo Lourenço e das discussões sobre eventuais laivos colonialistas que poderiam estar na origem do movimento colectivo que se gerou. Para mim, Timor é já uma história do século XXI - um pequeno país a lutar por outro pequeno país e que se vai manifestar a outro país, neste caso a Madrid. António Guterres integrou o cordão humano perto de São Bento e às tantas chamaram-no para ir atender um telefonema de Bill Clinton. A intensidade emotiva que levava na voz e o apelo que então fez impressionaram de tal modo o presidente norte-americano, que este se lhe referiu publicamente como tendo sido determinante para a tomada de posição dos Estados Unidos. Isto tudo, para mim, já é século XXI: os movimentos de rua cruzados com conversas entre chefes de estado e de governo; a comunicação social, sobretudo a rádio e a TSF, 100% ao serviço de uma causa, servindo de palco e de correio para as mais desvairadas ideias de solidariedade e de pressão; a PT a abrir linhas directas para a Casa Branca para o envio de e-mails de protesto; as Falintil, armadas até aos dentes, que decidem não reagir com violência à brutalidade das milícias, conquistando a solidariedade do mundo inteiro e evitando o pior; o trabalho fantástico e arriscadíssimo dos jornalistas; as imagens da CNN com os olhos infra-vermelhos daquele menino em fuga para as montanhas, que cai num buraco e não pode chorar...MJS - Regressemos às ruas de Lisboa em 74, ano da tua entrada para o PPD. Foi Sá Carneiro quem te seduziu para a vida partidária?HR - Não só, mas também. Foi sobretudo a anarquia que era o partido naquela altura e a grande liberdade que por lá se respirava. Entrei para o PPD em Dezembro de 74. Antes tinha andado pela esquerda católica e próxima do MES. Às tantas fartei-me das permanentes análises e reflexões que nos consumiam todo o tempo, embora essa fosse a grande vocação daqueles movimentos. A mim o que me apetecia era fazer coisas. Fazer parecia-me ser mais importante para o país do que analisar. O PS estava cheio de modelos importados, com muita gente vinda de fora. Não me revia neles. E no PPD, como te disse, havia um clima anárquico, muito estimulante, que me era mais simpático e me parecia mais operacional.MJS - E por lá te mantiveste por mais de uma década. Até à tua passagem a independente e, depois, a militante do PS, continuou a parecer-te que era aquela a plataforma mais estimulante e operacional para a tua acção política?HR - Eu queria fazer coisas e no PPD fiz muitas. Fui à luta em muitas frentes. A campanha de 79, por Setúbal, foi muito especial e é um bom exemplo para perceberes o meu envolvimento. Devo ter feito pouquíssimos discursos, passávamos o tempo a cantar. Estranho, não é? Quando contei isto ao Mário Soares, ele não queria acreditar - "você fez uma campanha a cantar?" O certo é que as pessoas aderiram, perceberam a diferença, sobretudo as mulheres e os jovens. O grande objectivo era quebrar aquele gelo, aquele medo que se tinha instalado sobre um dos bastiões comunistas. E foi quebrado, com uma campanha em descompressão. Em 80 tenho um grande conflito com Sá Carneiro, por causa do disparate da candidatura de Soares Carneiro. Dá-se entretanto a tragédia da sua morte. Francisco Pinto Balsemão sobe à ribalta, com o governo AD. Foi o período em que mais erros cometi. Tive pegas monumentais com o Balsemão e liderei mesmo, no interior do partido, um movimento para o deitar abaixo. Correu tudo mal. O primeiro governo AD cai, porque o PPD ( comigo, sá-carneirista convicta, ao comando das operações!) lhe tira o tapete. Volta a ser estranho, não achas? Tínhamos feito um acordo com Cavaco Silva e Freitas do Amaral, mas ambos roeram a corda. Olho para trás e arrependo-me, sobretudo porque Balsemão era uma pessoa decente. Eu, é claro, demiti-me dos cargos que tinha no partido...MJS - ... e em 82, se a memória não me trai, viveste um ano de grande turbulência político-partidária!HR - Em 82, há dois momentos curiosos: o caso PRP-BR e a lei do aborto. Os deputados que estavam no Conselho da Europa (era o meu caso), foram confrontados com um pedido de amnistia para os presos do PRP-BR que, entretanto, tinham iniciado uma greve de fome. Comprometemo-nos em Estrasburgo que faríamos uma proposta de amnistia ao Parlamento português. Quando cá chegámos, o Menéres Pimentel, na altura Ministro da Justiça, disse - "nem pensar, o PSD não vota isso de maneira nenhuma!" Ficámos pendurados. Os meus colegas de bancada aceitaram a disciplina partidária. Todos, excepto eu. Votei a favor da amnistia e renunciei ao mandato. Dá-se depois a votação da lei do aborto, no Verão. Eu, que já não estava na Assembleia, peguei na caneta e escrevi um artigo que pôs o partido, de novo, em brasa contra mim. O que defendia nesse artigo era exactamente o contrário da posição oficial do partido. Apesar de tudo isto, em Outubro vão ter comigo a casa e fazem-me a proposta para a Câmara de Cascais. O PSD estava, pelas sondagens da época, em quarto lugar na preferência dos eleitores. A campanha para as autárquicas ia ser necessariamente muito dura. Aceitei o desafio. Candidatei-me e ganhei. Aprendi aí uma grande lição - se fizeres as coisas com convicção e se os eleitores perceberem isso, passam por cima das divergências ideológicas e são capazes de te confiar o voto, porque acreditam na sinceridade com que te bates pelas causas em que acreditas. Repara que o meu eleitorado, PSD de Cascais, não podia estar mais em desacordo com as posições que eu tomara sobre a amnistia aos presos do PRP-BR e sobre o aborto. Muitos disseram-mo na cara. Mas separaram as águas, sentiam respeito por mim e acreditaram na honestidade da minha candidatura. Faz-me sempre muita impressão ver os políticos que, por cálculos estratégicos sobre o agrado ou desagrado do seu eleitorado-alvo, deixam de tomar as decisões e as atitudes que em coerência e consciência deveriam ser tomadas. Enganam-se. Redonda e pateticamente. Os eleitores gostam de políticos que sejam verdadeiros.MJS - Entre a actividade parlamentar e o exercício do poder local o que é que consideras mais interessante? Para que lado pende o teu coração político?HR - O poder autárquico é, para mim, o mais interessante. Mas é preciso ver que, entre as décadas de 70/80 e os anos 90, mudou muita coisa. O exercício do poder local mudou de natureza. Os dossiers financeiros passaram a ter mais três ou quatro zeros, o que faz com que a dimensão do que está em causa seja diferente. A pressão imobiliária passou, nos anos 90, a ser uma espécie de poder sem rosto. Ou seja, a globalização financeira pôs um pé, e um grande pé, no imobiliário. Os interlocutores das Câmaras, em termos de território, deixaram de ser os empreiteiros e os promotores até aí mais ou menos conhecidos, para serem as multinacionais. A desproporção entre o poder local e esse poder global financeiro é brutal. Hoje é muito mais difícil do que quando estive à frente da Câmara de Cascais. Naquele tempo a escala era outra e tínhamos a sensação de que podíamos lutar com armas mais iguais. Hoje em dia os autarcas, para fazer frente a essas terríveis pressões sobre o território, têm que se organizar em redes e têm que dispor de grandes apoios jurídicos.MJS - Cascais deixou-te alguma recordação especial?HR - Várias. Cascais foi, comigo, o primeiro município português a informatizar, completamente, o seu Plano e Orçamento, o que mudou logo a nossa maneira de trabalhar e deu-nos o prazer de nos sentirmos pioneiros. Andávamos todos muito entusiasmados com aquela novidade. Depois, deixa ver, houve as cheias. Pode parecer chocante o que vou dizer, mas é verdade, qualquer autarca sabe isto - as cheias que se abateram sobre o concelho durante aquele mandato, ajudaram muito o meu trabalho. Qualquer tragédia põe à prova os responsáveis, mobiliza vontades, as pessoas ficam diferentes durante algum tempo, mais solidárias, com mais ideias. Este estado de espírito durou um mês, mas aproveitei bem toda aquela energia de voluntariado e de generosidade. E isso deu-me a oportunidade de testar soluções, que não teria ousado de outro modo. O meu maior inimigo foi o papel. A burocracia. Todos os dias apareciam mais papéis em cima da minha mesa. Era uma sufocação e parecia de propósito para derrotar. Quanto mais trabalhavas, mais acumulavas. Os despachos eram quase nulos, tanta era a nova papelada que não parava de entrar. Cheguei mesmo a propor que se mudasse o verbo atribuído aos "despachos", por outro relativo a "atrasos". Passaria a dizer-se e escrever-se frases como estas - "o seu assunto já foi atrasado" ou "a senhora Presidente está em atraso", etc. Parecia-me que, assim, era tudo mais verdadeiro e mais em sintonia com o espírito do aparelho camarário. Para teres uma ideia da extensão do que estou a dizer, ouve esta: decidi, mal iniciei funções, receber sempre quem quisesse ir falar comigo. Para isso reservei os sábados, das 9 às 9. Fiz quatro mil e tal audiências em três anos. Na Câmara, nesses dias, só estava a minha secretária, o porteiro e eu. As pessoas vinham expor os seus assuntos e, muitas vezes, era eu quem lhes propunha que, mesmo ali, fizessem um requerimento. A minha secretária, na 2ª feira, ia aos serviços dar entrada e os requerimentos vinham devolvidos com a indicação de que não podiam ser aceites porque não tinham dado entrada "pelos" serviços. Passei-me! Cheguei mesmo a preparar uma Resolução (não foi necessário, felizmente, avançar com ela), em que dizia - "Todos os requerimentos dirigidos à Presidência e entregues na Presidência, são aceites pela Presidência."MJS - Essa luta durou até quando?HR - Até finais de 85. Os mandatos autárquicos tinham, naquele tempo, a duração de três anos. Logo a seguir, em princípios de 86, realizaram-se as presidenciais, as do grande combate entre Mário Soares e Freitas do Amaral. Apoiei a candidatura de Soares e, na véspera das eleições, demiti-me do partido. Mais tarde, fui deputada independente nas listas do PS, até 91. Foi só depois das eleições que deram a segunda maioria absoluta a Cavaco Silva e ao PSD, no dia 5 de Outubro, que aderi ao PS, como simples militante. MJS - Há, no teu percurso, um curioso timing para adesões e demissões. Deves ter uma interpretação muito própria do sentido de "oportuno" em política.HR - Pois é. Talvez seja por não me mover nestes terrenos por uma lógica de poder ou por preferir à lógica dos aparelhos a lógica do movimento, ou dos movimentos, se quiseres. MJS - E agora, Helena? HR - Agora faço parte do grupo parlamentar do PS, passo o dia na Assembleia, estudo as matérias, escrevo textos, recebo pessoas, recolho informação. Nas reuniões do grupo parlamentar sou muito activa. No resto do tempo, como sabes, só existe a primeira fila. As sucessivas alterações ao Regimento da Assembleia foram feitas para dar cada vez mais protagonismo à primeira fila. Durante os tempos anárquicos da Constituinte a coisa passava-se de outra maneira e cada deputado sentia que podia intervir em pé de igualdade com os outros. Agora és chamada ao plenário para as votações políticas mais importantes e pronto. Quando fiz parte da direcção do grupo, até 99, ainda tentei inverter este espírito. Mas não houve nada a fazer. Se pensares que, por direito próprio, um deputado tem apenas dez minutos por ano para falar no Parlamento! Para além deste tempo, só se a primeira fila o convocar para um assunto específico, o que é raríssimo. É tudo um bocado desmotivante. Neste momento estou a organizar o sistema de comunicação on-line para os 115 deputados do PS. Elementar, não te parece? Só que ainda não tinha sido montado. E está a ser activado por mim, que não tenho nada a ver com informática.MJS - Admito que a informática e as tecnologias de ponta não sejam a melhor música para os teus ouvidos, mas gostas bastante de literatura científica e de outras áreas que não pertencem ao terreno da tua formação específica!HR - Claro, é exactamente onde estão a surgir as coisas fantásticas e inovadoras. Tens que te manter disponível para aquelas direcções onde as descobertas estão a acontecer: a ciência, as artes, a poesia, o reino dos criadores. São mundos maravilhosos onde vão sendo abertas portas e janelas, são mundos povoados de imagens fulgurantes, com conceitos novos e muito inspiradores... Os criadores e os cientistas são, para mim, como os descobridores portugueses. O que eles fazem e inventam alarga-nos as fronteiras do conhecimento, revela-nos mundos novos. É aí que o sonho começa. São esses os territórios que nos fazem sonhar e é preciso esticar o sonho, continuamente. Essa é uma prerrogativa de se ser de esquerda de que não abro mão. Acho indecente que haja políticos, sobretudo os que se dizem da família da esquerda, não interessados por todos os lados da criação humana. Acho indecente e empobrecedor.MJS - Do teu ponto de vista qual é a ferida interna que a democracia portuguesa menos soube tratar e que, se não for cuidada com grande atenção e urgência, a vai corroer com efeitos muito nefastos?HR - Há várias. As sempre referidas por todos são, naturalmente, a educação, a saúde, a segurança, a justiça. Mas eu sou mais sensível à área do território. Descurámos durante demasiado tempo o ordenamento territorial. E continuamos a descurar. Lembra-te, ainda recentemente, do problema do TGV. Havia um projecto, de repente aparece outro traçado, que afecta de uma maneira completamente diferente as coordenadas do país e que surge, de um dia para o outro, como se fosse um coelho tirado da cartola para ser apresentado à discussão pública. Mas que condições é que temos para o discutir? Assistimos pacatamente à transformação progressiva do rosto do território, ao esgarçar do tecido rural, ao desaparecimento das pessoas, à morte das aldeias, ao crescimento selvagem das cidades, com urbanizações em cacho e sem qualquer urbanismo, esquecemo-nos que o mar existe, o mar não faz parte da prioridade dos nossos projectos e somos uma das maiores zonas económicas exclusivas do mundo, por causa do mar, sabias? Temos 90.000km2 de território e um milhão e meio de mar. Podia falar-te de muitas outras coisas, mas acho que o território, que sobreviveu oitocentos anos, que é a base do nosso Estado, da Nação, que se manteve o mesmo, que resistiu a muita predação, está em risco de não resistir a este desequilíbrio absoluto que está a afectar e a prejudicar a vida das pessoas. Não é possível continuarmos a ignorar o território. Quer como recurso, quer como qualidade de vida, o território é um dos pontos mais críticos do desenvolvimento de Portugal.MJS - A propósito de pontos críticos, voltaste à carga, no último Congresso do PS, com uma moção sobre a questão do aborto. A interrupção voluntária da gravidez é ou não uma questão fracturante, como agora se diz, no PS?HR - Não gosto muito desse vocabulário. Acho que os despedimentos em massa, que estão a acontecer na Europa, são muito mais fracturantes, afectam muitas vidas, muitas famílias. Com certeza que a questão do aborto divide as pessoas, no PS, como noutros partidos. O que aconteceu com o Referendo é que se instalou no PS uma espécie de tabu implícito - sendo conhecida a posição do secretário-geral contra a despenalização, o partido entendeu não tomar posição. MJS - Foste ou não foste ao Congresso forçar essa barra? O PS, em anos e momentos anteriores, tomou sempre posição sobre a matéria, honrando de resto o nome e a família ideológica a que pertence. Dá ideia que agora é que o assunto, por razões que escapam aos seus fundamentos políticos, culturais ou morais, passou a ser fracturante no interior do partido. HR - Não fui forçar a barra. Fui dizer da oportunidade do assunto, contra os que mantêm que é um assunto não oportuno. Um terço dos congressistas votou favoravelmente a minha moção. A fractura que a questão levanta não é ideológica, é táctica. O partido tomou sempre posição, como disseste: tem posição no seu Programa e sempre que se discutiu a despenalização do aborto ouviu-se a voz do PS a revelar os fundamentos da sua posição. Que nunca em nada violava o direito de cada um dos seus militantes a votarem de acordo com a sua consciência. Só no Referendo é que não se fez ouvir. Do meu ponto de vista, foi absurdo o que se passou e terá contribuído para a desmobilização do eleitorado. Tratando-se do maior partido da cena política portuguesa, não haver uma tomada de posição era quase um convite ao desinteresse, ao alheamento. Nas urnas isso traduz-se em abstenção.MJS - Continuas a ser católica praticante ou abstiveste-te do culto?HR - Deixei de frequentar a Igreja. Continuo a fazer as minhas leituras e meditações. Não tenho vontade de ouvir ralhetes e de ver olhares acusatórios durante a homilia. Bem basta estar constantemente a ser julgada cá fora. Mas estou sinceramente convencida que há-de vir um Papa, talvez já não no meu tempo, que pedirá perdão às mulheres, em nome da Igreja Católica, pela incompreensão com que foram tratadas no século XX.MJS - Dá-me a tua palavra de eleição.HR - Liberdade. Só pode ser liberdade.

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