Brett Easton Ellis no divã do serial killer

Dez anos depois da publicação de "Psicopata Americano", chega o filme de Mary Harron. Dez anos depois de ter sido vilipendiado - misógino foi o mínimo, porque até defenderam a sua castração -, o escritor Brett Easton Ellis enfrenta de novo a sua criação, o "yuppie serial killer" Patrick Bateman. E não é que os dois mastigam da mesma maneira? Só que um, os restos de comida; o outro, um mamilo carbonizado.

Brett Easton Ellis faz uns barulhos viscerais enquanto chupa os restos de comida tailandesa. É medianamente fanfarrão, descuidado, prestável, ou seja, um doce. Mas há algo de singular nos barulhos. Não se consegue evitar pensar em Patrick Bateman, personagem que ele criou em "Psicopata Americano", a mastigar um mamilo e a fazer outras coisas descritas detalhadamente - coisas clinicamente dolorosas que poderiam ter sido acompanhadas com aquele chupar e mastigar. É errado associar-se um autor à sua personagem, sobretudo, uma personagem que, diz o escritor, é uma metáfora de tudo o que é repugnante na terra dos "yuppies". Mas "Psicopata Americano", publicado em 1991, nunca foi considerado uma sátira - e deveria tê-lo sido, diz agora Easton Ellis.Foi o escritor mais vilipendiado da América, o Salman Rushdie do estilo "tudo de mais, tudo demasiado rápido". A editora inicial, Simon & Schuster, cancelou a publicação do livro no último momento, no meio de imenso alarido e ameaças de morte. Num "site" feminista, uma mulher cuspiu que "há melhores maneiras de tratar de Brett Easton Ellis do que apenas censurá-lo. Preferia vê-lo esfolado e com os órgãos genitais cortados."O livro foi considerado misógino - a personagem central é um banqueiro durante o dia, e à noite um sádico assassino. Ainda por cima, as suas vítimas são mulheres, sem-abrigo, homossexuais, uma criança e um cão de nome. Foi um dos livros da década de 90. Pode-se amá-lo, odiá-lo, percebê-lo ou gozar a inteligência da sua duplicidade. Era irresistível. Encarnava os anos 80 e os seus clichés. Agressividade imparável e ganância, consumismo selvagem e "yuppies" repelentes vestidos de marcas até aos cabelos. Easton Ellis declara-se chocado com a fúria desencadeada. "Os meus livros atacam coisas que merecem ser atacadas. Creio que 'Psicopata Americano' é um livro politicamente correcto. Fico espantado com a forma como as mulheres o interpretam, dizendo que é um livro que advoga comportamentos negativos contra elas. Vejo-o como um ataque à supremacia branca masculina, ao capitalismo e ao sexismo. Apenas muito tangencialmente é um livro sobre a violência contra as mulheres - excepto pelo facto de no centro da história estar um imbecil que trata mal as mulheres."Isto significa não lhes telefonar após o terceiro encontro. Isto significa queimá-las e mutilá-las, torturá-las com um rato esfomeado e forçá-las a ter relações sexuais com outras mulheres enquanto ele as penetra, abusa ou assiste. Estes comportamentos são contados com o desprendimento pormenorizado com que enumera as marcas de fatos e acessórios e restaurantes e os seus pratos emblemáticos - peitos carbonizados assumem a mesma importância que uma lagosta bem passada. O desgosto de mim. Agora há um filme. "O ambiente mudou", assegura. "O filme vai esclarecer muita gente sobre o livro, que tem hoje uma reputação diferente da que tinha há sete anos. Já não carrega o peso da controvérsia. Passou por uma metamorfose, e é interessante que tenha sido uma realizadora, Mary Harron [de "I Shot Andy Warhol"], a pegar na história. As pessoas vão ver mais a ênfase na crítica do comportamento masculino. Antes de o livro ser editado apenas sabiam dos excertos tenebrosos, e creio que se eu tivesse também apenas visto essas partes, teria ficado enojado". Faz uma pausa. "Mas teria sempre ficado intrigado."Ao longo dos últimos oito anos, muitos realizadores, produtores e actores estiveram ligados ao filme. A certa altura, Oliver Stone quis dirigi-lo, como um épico com um orçamento de 80 milhões de dólares. Cameron Diaz seria uma das actrizes. Noutra ocasião, o próprio Ellis escreveu um guião, que foi rejeitado. Em momentos diferentes, ou o dinheiro não chegava, ou as pessoas não eram as adequadas. Todos ficaram entusiasmados quando Leonardo DiCaprio se ligou ao projecto. Mas acabou por ser convencido a não se deixar sujar por ele, e foi o mais sombrio Christian Bale a fazer o papel - o orçamento desceu para seis milhões de dólares."Sempre pensei que os meus livros tinham poucas hipóteses de passar para o cinema. Não têm história nem personagens simpáticas, não há acção. Apenas muitas pessoas a andar de um lado para outro, a ir a festas."Apesar de a adaptação de "Menos Que Zero" ter dado origem a um objecto cinematográfico repugnante, Easton Ellis não se desinteressou da rodagem de "Psicopata Americano". Visitou o local de filmagens, no Canadá, onde foram filmados os interiores e arrepiou-se. "Vi Christian Bale vestido como Patrick Bateman, e foi estranho, porque nunca tinha feito nenhuma imagem dele na minha cabeça. Nunca pensei nele como personagem ou como ser humano. Era apenas uma noção abstracta de mau comportamento masculino e de morbidez. Nunca tive uma imagem clara de como seria a aparência dele. Mas depois vi Bale a sair da sala do guarda-roupa vestido de Bateman. Eu nem conseguia olhar, só pensava 'não, não, não!'. Não era daquela maneira que devia ser dito ou filmado. O restaurante não se parece nada com isto."Ellis não é de confiança. Num minuto, diz que as personagens são apenas metáforas sem base real; no minuto seguinte, são verdadeiras. Uma vez proclamou que todas as personagens são manifestações do mundo. "Apenas a soma daquilo que não gosto na sociedade." Quer tenham sido coisas desagradáveis, macabras ou obsessivas, a verdade é que marcaram a sua vida. Pode tentar parecer normal, mas quantos homens de 34 anos admitem que já dormiram com homens e mulheres, se interessam por 'ménages à trois' e discorrem sobre drogas e álcool? E aqui drogas significa o grande H [heroína]. Mas isto seria de esperar de quem foi arvorado em porta-voz de uma geração, com "Menos que Zero". "Aos 21 anos, ser rotulado disto ou daquilo é ridículo. Acreditamos no que ouvimos e sentimo-nos lisonjeados. Mas depois acordamos - e sentimo-nos humilhados. Há uma separação assustadora entre a imagem que têm de nós e aquilo que somos. A imagem pública acaba por se sobrepor à real. Continuará a existir mesmo depois de morrermos. Causa ansiedade e é algo muito estranho de se enfrentar."Onde é que o público e o pessoal se confundem? Easton Ellis está sempre a falar de si próprio; apenas uma parte dele reage face ao mundo real. Ele não concorda: "Posso criticar este mundo, mas ao mesmo tempo sou parte integral dele. A minha motivação é o desgosto de mim mesmo. Não provém da bebida, de tomar drogas ou de lixar alguém numa relação. Vem apenas de ser humano."Homo, hetero, bi? Já em criança se sentia afastado do mundo. Ia para o jardim de infância na soalheira Los Angeles com uma camisa preta de gola alta. "Não me conseguia divertir com ginástica, canções, dançar em círculo de mãos dadas, fazer fila para receber leite achocolatado. Parecia-me tudo sem sentido."Sempre gostou da escrita, o lugar onde os alienados tentam assegurar uma ligação com o mundo. Aos 17 anos já escrevera três novelas, mas as notas na escola eram uma desgraça, e o pai severo detestava que isso afastasse o filho dos jogos e competições. Queria ir para a Universidade de Bennington, tradicionalmente ligada às artes. O pai preferia que estudasse gestão de empresas. "Deixámos de falar quando fui para a universidade e só quando 'Menos que Zero' foi publicado é que ele contactou comigo."O pai de Brett morreu pouco depois da publicação de "Psicopata Americano". Acabaram por resolver os problemas? "Não. Quando falo sobre isso em terapia, sinto-me mal. Mas eu já aceitara o meu pai muito tempo antes de ele morrer. Pensei: 'Que é que posso fazer? Este homem é muito violento. É alcoólico. Faz o que quer. É pai. É suposto que dê bons exemplos. Mas não deu. Não merece que eu perca tempo a dar-me com ele.'"Apesar de estar sempre a insistir que "Psicopata Americano" não é autobiográfico, já referiu que a violência do pai e o seu ódio contra ele criaram Patrick Bateman. Durante a infância, foi várias vezes sovado pelo pai, pelo que a morte deste foi mais motivo de alívio do que tristeza. Brett Easton Ellis acabou de sair de um relacionamento sentimental que durou dois anos. Não diz se foi com um homem ou com uma mulher. Que mistério é este no que toca à sua sexualidade? E terá isto algum interesse? Não nos fartámos da ambiguidade sexual com Ziggy Stardust? Então, já dormiu com alguma mulher? Já dormiu com algum homem? Por que é que não define a sua sexualidade? "Tem a ver com o facto de ter fãs heterossexuais e fãs homossexuais e com a ambiguidade sexual de muitas das personagens masculinas nos meus livros. Para mim, essa ambiguidade é metafórica. Tenho a sensação de que se eu tivesse dito que era heterossexual ou homossexual, os meus livros poderiam ser analisados de uma forma que talvez eu não queira que eles sejam analisados."É bissexual? "Oh, no sentido de que se pode ter um lado homossexual e um lado heterossexual? Gostava de ter, mas não tenho. Não lhe vou dizer qual é o lado que não tenho, mas não tenho os dois lados", declara, tentando soar brincalhão e recatado, em vez de parecer brutalmente evasivo. Está embevecido pela ambiguidade e pela contradição irónica. Por exemplo, afirma não se interessar pela moda, mas conhece as marcas de "designer" que vestiram cada grupo ao longo da última década.Diz que, por agora, não quer nenhum relacionamento, pois acabou de sair de um. Quem acabou? "Foi de comum acordo. Mas fui eu que insisti. Tenho tendência para afastar as pessoas. Todos os clichés de ser escritor: envolvo-me demasiado na escrita e durante esses períodos bebo sem controlo. Quando se é escritor, tem que se andar com alcoólicos, é a única forma que se tem de comunicar. Isto afasta qualquer pessoa que não beba como um escritor", diz, quase gabarola. O rei da ironia parece não ter percebido que ainda há poucos minutos odiava o pai por ele ser alcoólico. Ou então está apenas a ser irónico.*Exclusivo Público/Planet Syndication

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